Mais uma vez, foram as imagens e palavras de outros que me inspiraram no desejo de visitar a região de Bucovina. Um artigo na revista Fugas, há três anos, com uma capa com um mosteiro com uns frescos de um azul encantatório fez com que desde aí sonhasse mas por qualquer razão fosse adiando a viagem à Roménia. Até este ano e, claro, Bucovina tinha de constar do itinerário.
Bucovina fica situada na histórica Moldávia, o principiado independente que a par da Wallachia se juntou no século XIV para formar a primeira noção de estado romeno. Foram séculos de luta para não se deixar subjugar aos otomanos, mas o território moldavo acabou por ser separado – em 1775 Bucovina, região mais a norte, foi anexada pelo império austro-húngaro e em 1812 o que é hoje a República da Moldávia (antiga Basarabia), mais a leste, foi anexada pela Rússia. Restou a Moldávia província romena. Uma grande confusão, está visto, ainda mais se dissermos que a Bucovina tradicional incluía territórios hoje da Ucrânia e fazia fronteira com a Polónia.
História à parte, Bucovina é uma região bucólica, terra de montanhas e de mosteiros medievais. O nome “bucovina” significa, literalmente, “terra da faia”. E são enormes manchas de arvoredo de faias o que vemos desfilar pela nossa vista, imaginando que talvez a nossa ilha Faial pudesse assemelhar-se a Bucovina caso ainda mantivesse a sua plantação autóctone original.
Suceava é maior cidade de Bucovina e um bom ponto de partida para se visitar o maior símbolo da região: os seus mosteiros. Apesar de a cidade ser servida por um aeroporto com ligação a Bucareste (e até a Londres e Bolonha), o turismo não abunda, de tal forma que estive até à última para tentar reunir um grupo de 3 para seguir num tour de um dia, senão teria de arcar com o seu custo na totalidade. Suceava foi em tempos uma cidade real, capital do principiado da Moldávia por mais de 200 anos, mas acabou por crescer e desenvolver-se como uma cidade industrial. Nas últimas décadas fez questão de restaurar as ruínas da antiga Cidadela Real, do século XIV, de cujo topo se obtém uma panorâmica larga. Já cá em baixo, na cidade, encontramos uma série de igrejas, incluindo a do Mosteiro de São João o Novo, classificado pela Unesco e um aperitivo para o que veremos em seguida.
Stefan cel Mare (Stefan, o Grande), príncipe moldavo do século XV, é um herói romeno e uma enorme figura de Bucovina. Guerreiro, lutou grande parte da sua vida contra os invasores otomanos, mas para nós, visitantes da Bucovina do século XXI, o seu legado manifesta-se em termos culturais. Foi por sua iniciativa ou com o seu apoio que foram erguidas uma série de comunidades monásticas, e os seus descendentes acabaram por dar continuidade a esta ideia. Nesse sentido, nos séculos XV e XVI foram erguidos diversos mosteiros com uma arquitectura muito especial, mesclando características locais com elementos bizantinos e góticos. Mais distintivo, cada um destes mosteiros foi preenchido quer na fachada quer no interior por uma infinidade de frescos com a representação de temas religiosos – o que faz com que hoje conheçamos as igrejas de Bucovina como os “mosteiros pintados de Bucovina”.
E são oito os Mosteiros Pintados de Bucovina distinguidos pela Unesco como Património da Humanidade: Arbore, Probota, Patrauti, St George, Humor, Voronet, Moldovita e Sucevita. Visitámos os últimos 5 e pudemos constatar como todos eles chegaram incrivelmente bem preservados desde a época medieval até aos nossos tempos, com as pinturas bem vivas. Cada um destes mosteiros está mais associado a uma determinada cor e as pinturas da sua fachada sul estão sempre mais bem conservadas do que as da fachada norte, cortesia dos ventos agrestes de norte. Todas as pinturas que admiramos nestes mosteiros foram apenas limpas e restauradas, mantendo-se os frescos originais, não tendo voltado a ser pintados. E cada um destes mosteiros está mais associado a um determinado motivo bíblico. Estas podem ser algumas diferenças, cor e motivos bíblicos, mas a motivação para a construção destes mosteiros e criação dos frescos foi a mesma: a de promover a religião cristã ortodoxa ao mesmo tempo que se procurava educar os iletrados, dando-lhes a conhecer a história da cristandade através das imagens das pinturas – daí as pinturas e o simbolismo nelas representado também nas fachadas exteriores, para que todos as pudessem ver e entender. Como resultado, a fé aliada à arte, marca identitária de toda uma região.
A qualidade artística destes frescos é soberba, de uma beleza, originalidade e carácter único surpreendentes, gabados não apenas pela sua composição e interpretação, mas sobretudo pela inventiva aplicação da cor e harmonia. A cor é, aliás, a grande sedutora e causa igualmente surpresa como se pôde manter ao longo da passagem do tempo e do clima.
Já se disse, cada mosteiro possui uma cor dominante e em cada um deles o pintor-artesão responsável interpretou as cenas bíblicas à sua maneira, embora respeitando o programa iconográfico. Em seguida, um breve tour por alguns destes mosteiros, instalados no campo, fora das povoações, ainda hoje habitados por freiras integralmente vestidas de preto que fazem questão de deixar os jardins que os circundam impecavelmente verdes e com rosas a desabrochar.
O Mosteiro de Humor foi construído em 1530 e é um recinto fortificado com uma torre donde se alcança um bom cenário para a pacatez do campo.
A sua igreja é atípica, uma vez que não possui a costumeira torre que se observa nas demais igrejas da região. A razão será o facto de ter sido mandada construir por um nobre e não por um príncipe reinante. A cor dominante da igreja do Mosteiro de Humor é o vermelho acastanhado. Os frescos na fachada sul exterior mostram a história de São Nicolau e a Anunciação – e é brutal constatar a enorme diferença de conservação dos frescos nas fachadas sul e norte, devido ao já mencionado factor vento.
O Mosteiro de Voronet é azul. Um azul tão luminoso e intenso, de uma distinção tal que foi mesmo criado o termo “azul de Voronet”.
Mandada construir por Stefan, o Grande em 1488, há quem diga que esta é a mais famosa das igrejas romenas. O seu telhado parece um chapéu de elegantes abas, mas este é apenas o primeiro elemento que retém a nossa atenção. A obra de pintura da fachada exterior é considerada a Capela Sistina do leste. Na fachada oeste da igreja encontramos pintada uma incrível cena do Juízo Final, uma interpretação poderosa da Bíblia por parte de um artista completo, versado e talentoso não apenas na pintura, mas também um estudioso. A escolha desta representação do Juízo Final na fachada oeste não é alheia ao facto de ser aqui que o sol se põe, despedindo-se do dia, pretendendo-se assim que esta cena bíblica que representa o fim da vida esteja também associada ao fim do dia. Na fachada sul vemos representados diversos filósofos, como Aristoteles, Platão e Sócrates, o que não é assim tão comum em temáticas religiosas. O interior da igreja de Voronet é igualmente deslumbrante (como o de todas as outras igrejas visitadas). Decorado interiormente, de alto a baixo, temos a primeira sala do calendário, com 365 pequenas pinturas com alusão a factos e cenas de cada um dos dias, uma segunda sala com a história de São Jorge (o nome desta igreja) e uma terceira sala com o altar. Curiosamente, em Bucovina as igrejas possuem 3 salas, ao contrário das de Maramures que possuem apenas 2 salas, embora em ambas as regiões as igrejas sejam cristãs ortodoxas.
O Mosteiro de Moldovita foi construído em 1532 e aqui estão as pinturas mais bem preservadas de todas as igrejas de Bucovina.
Situado bem no meio da floresta, a cor dominante das pinturas da sua igreja da Anunciação é o amarelo. A cena com a representação da tomada de Constantinopla é superior. Nas igrejas destes mosteiros anuncia-se a proibição de fotos no seu interior, mas no de Moldovita elas são toleradas.
Entre o Mosteiro de Moldovita e o de Sucevita passamos pelo Passo de Ciumarna. O tour por mim escolhido foi fantástico, com informação e simpatia preciosas por parte do guia, com muito tempo para a visita a cada mosteiro, mas com poucas paragens para se poder admirar a paisagem e, logo, para fotografias. A excepção foi este Passo, a 1109 metros de altitude, lugar de uma icónica escultura de uma mão gigante e onde estão montadas umas bancas de comida e souvenirs, para além de um parque aventura com uma zip line. Não perdi nem um segundo com estas atracções, ávida de olhar só para este pedaço das montanhas dos Cárpatos.
Depois do almoço, veio a visita ao último dos mosteiros do dia, o de Sucevita.
Também fortificada, a igreja da Ressurreição foi construída em 1583 e pintada por volta de 1595, ou seja, cerca de 50 anos após as demais, sendo considerado o último exemplar destas maravilhas. A partir daí não mais se criaram estas autênticas obras de arte, uma vez que então os otomanos já marcavam presença forte na região e para além do tributo a pagar-lhes ficava muito dispendioso gastar recursos financeiros com estas peças religiosas e artísticas. A cor de Sucevita é o verde e o seu maior destaque é o fresco com a representação da Escada do Paraíso, com os anjos a ajudar os virtuosos a lá chegar e os pecadores a serem derrubados para o inferno.
Inferno, porém, é algo que não parece conjugar com Bucovina, seu ambiente e sua arte. É tudo tão bonito e belo que olhando o céu azul dava-me vontade de arriscar voltar no Inverno inclemente, só para poder ver a cor branca brilhante da neve lado a lado com as cores reluzentes das pinturas dos mosteiros.