As viagens têm destas coisas. Na preparação desta pela Roménia estava ansiosa por conhecer Maramures e Bucovina, as duas regiões que me fizeram querer viajar até à Roménia. Da Transilvânia, por todos a associarem a Drácula e eu não ter qualquer qualquer interesse por histórias de vampiros, não tinha criado quaisquer expectativas. Pese a ignorância, isso, descobri-o uma vez mais, é o primeiro passo para que as viagens nos surpreendam. Esta região acabou por ser a que mais me impressionou e seduziu, de tal forma que voltava já amanhã.
A Transilvânia está rodeada pelas montanhas dos Cárpatos e fica situada bem no centro da Roménia. No entanto, apenas se juntou ao reino após a I Grande Guerra Mundial. Até aí a região era parte da Hungria e foram os magiares quem no século XII convidaram os colonos saxões para aqui se estabelecerem na tentativa de fazer face às investidas turcas, protegendo as suas fronteiras. Nem sempre o conseguiram e muitos outros povos, incluindo os mongóis, atravessaram a região – já dá para ver o cruzamento de povos que por aqui historicamente deambularam.
Foram esses saxões que acabaram por conferir o carácter arquitectónico e cultural que ainda hoje podemos admirar na Transilvânia, sobretudo nas povoações por si levantadas – originalmente sete (Bistrita, Sibiu, Cluj-Napoca, Brasov, Medias, Sebes e Sighisoara), dando origem ao nome alemão da região, Siebenbürgen. O regime comunista que governou a Roménia no século XX e as dificuldades económicas que o país enfrentou após a sua queda fizeram com que aquele grupo étnico alemão abandonasse o país em massa a partir de 1989. Felizmente, não puderam levar consigo as suas aldeias.
É no sudeste da Transilvânia que encontramos a maior parte das 150 aldeias saxãs, sete delas classificadas pela Unesco como Património da Humanidade (Biertan, Calnic, Darjiu, Prejmer, Saschiz, Valea Viilor e Viscri), tendo como elemento distintivo o facto de serem igrejas / aldeias fortificadas. Tudo isto num cenário belíssimo e num ambiente pré-industrial. A ruralidade é cativante. Nas estradas secundárias os carros são substituídos pelas carroças – e foi aqui que dei de caras com a tal senhora a falar ao telemóvel enquanto era transportada pelos cavalos. Vêem-se campos de milho, salpicando de amarelo uma paisagem maioritariamente verde, e a palha está empilhada artisticamente em rolinhos. Para além dos cavalos que servem de meio de transporte, vemos vacas, ovelhas e até patos. As montanhas estão sempre lá, embora muitas das vezes discretas, com elevações suaves.
Vida simples, já se vê, que parece não ter mudado desde há séculos. E, para comprová-lo, eis que surgem amiúde as tais aldeias fortificadas. À semelhança do nosso Alentejo, onde as povoações mantém uma coerência arquitectónica entre si, mas sempre muito própria, também as povoações da Transilvânia possuem elementos que facilmente a identificam, embora não sejam de todo iguais. Ou melhor, iguais apenas na sua pacatez, tranquilidade e qualidade pictórica, poéticas, até. Um pequeno rio sempre a correr por perto serve um ponto no mapa cruzado por uma estrada com casinhas típicas de ambos os lados, numa arquitectura simples colorida em tons pastel. E às vezes é mesmo apenas isso, uma estrada ou um rio a dividir a povoação. Isso e a tal igreja fortificada.
As igrejas fortificadas da Transilvânia são cidadelas erguidas pelos saxões entre os séculos XIII e XVI. A expansão da aldeia era feita a partir da sua igreja, uma interpretação muito própria da arquitectura gótico-vernacular, e através das fortificações a aldeia inteira poderia sobreviver durante uns tempos em caso de ataque e cerco inimigo. Ou seja, estas igrejas tinham um propósito quer religioso quer defensivo, mas estas fortificações são diferentes de castelos, uma vez que apenas pretendiam defender uma comunidade pequena. À aproximação destas aldeias, que ainda hoje preservam o secular sistema de organização e uso de terra por parte das famílias, percebe-se logo o seu carácter defensivo, vendo-se desde ao longe as torres e os muros erguidos na Idade Média.
Para se conhecer a paisagem da Transilvânia e as suas diversas igrejas fortificadas é essencial lançarmo-nos ao caminho de carro. As distâncias são longas e há que fazer uma série de desvios por estradas estreitas de uma só faixa, as tais que raramente partilharemos com outros carros ou sequer tractores, apenas carroças e manadas ou rebanhos. Dá vontade de visitar todas as aldeias, mas o tempo e a sensatez obrigam a escolhas.
Em seguida, um passeio por algumas destas aldeias, começando por aquela que mais me fascinou, Viscri.
Chegar a Viscri vale qualquer viagem. É a Transilvânia no seu melhor e mais autêntico. As paisagens são belíssimas e no caminho avistamos outras aldeias fortificadas.
A aldeia de Viscri é basicamente duas ruas de terra batida com campos de cultivo ao seu redor. As suas casinhas têm tonalidades várias, mas todas suaves. Destaque, no entanto, para o azul. Os telhados ocres mais parecem um chapéu, o chapéu típico das casas da Transilvânia. E Viscri tem, como não podia deixar de ser, a sua igreja fortificada. Diz-se que esta igreja será a mais antiga da região, construída pela comunidade Székely em 1100 e depois fortificada pelos saxões no século XIII. É uma pequena fortificação de paredes brancas, guaridas de madeira e telhados cores. Do exterior parece quase que uma fortaleza de brincar e no seu interior confirma-se esta impressão. Podemos visitar a sua igreja e caminhar quer pelo piso baixo da fortaleza como pelo piso superior. O ambiente medieval é total, incluindo as madeiras periclitantes a ranger. Viscri é a mais poética e romântica das aldeias da Transilvânia, puro charme.
Biertan, à semelhança de Viscri está também classificada pela Unesco. Um dos primeiros assentamentos dos saxões na região, as suas casas são igualmente um deleite para os nossos sentidos. E a sua localização geográfica é fantástica, com os telhados a sobressaírem no meio dos campos verdes encostados a um pequeno monte.
A igreja fortificada de Biertan não é, no entanto, nada pequenina. Pelo contrário, esta que é uma das mais visitadas e reconhecidas fortificações é imponente e tem várias torres que protegem a igreja gótica. Ultrapassada a entrada somos transportados através de uma escadaria coberta em túnel de madeira que nos deixa num plateau superior. Vagueamos por este espaço inspirador a que não faltam sequer belas vistas da paisagem que circunda a fortificação. A sua igreja é uma das poucas que ainda preserva o altar original datado do século XVI.
Malancrav é uma das povoações que tem vindo a atrair cada vez mais visitantes. Um fio de água, que o atrevimento poderia chamar rio, divide as duas estradas da aldeia, cada uma ladeada das típicas casinhas que não me canso de gabar.
A torre da igreja fortificada surge elegante como vigia nas suas costas. Como curiosidade, esta aldeia era propriedade de uma família, os Apafi, e os habitantes seus servos. A servidão terminou apenas no século XIX e Malancrav é hoje a aldeia com a maior comunidade de saxões na região.
Alma Vii é a mais remota das aldeias fortificadas que visitei, de tal forma que afirmar que é uma viagem no tempo que nos espera não é cliché. Passamos por pedaços de floresta que surgem de rompante para logo darem lugar a prados, ultrapassamos com respeito as carroças com os agricultores locais que retornam do dia de trabalho e eis que mais uma fiada de casinhas de tons pastel nos aguarda. Um pouco mais elevada na paisagem aí está a igreja fortificada. Infelizmente, ao fim da tarde a fortificação já estava encerrada, restando-me apenas contorná-la no seu exterior. Não é a mesma coisa, mas chegou para me tornar mais feliz.
De passagem avistei ao longe Rupea e Saschiz, o que chegou para me maravilhar. Lamento até hoje a falta de tempo para uma certamente merecida paragem nestas e em muitas mais igrejas fortificadas da Transilvânia.