“Há quem se canse de percorrer as estradas intermináveis e lisas desse latifúndio sem relevos. Há quem adormeça de tédio a olhar a uniformidade da sua paisagem […] Amedronta-os a solidão de uma natureza que não se esconde por detrás de nenhum acidente, corajosa da sua nudez limpa e total. Eu, porém, não navego nas águas desses desiludidos.” – Miguel Torga, in O Alentejo
Esta é a etapa mais longa da nossa jornada pela EN2, aproveitando as várias rectas que as planícies do Alentejo nos oferecem, algumas delas intermináveis.

A saída do Sardoal em direcção a Abrantes é feita na companhia de intensa vegetação. E parece que os pinheiros e eucaliptos que vinham a dominar a paisagem da Beira desapareceram. A EN2 passa em baixo da cidade de Abrantes, instalada numa colina, vendo-se o castelo ao alto e o Tejo no lado esquerdo. E passamos a ponte rumo a além Tejo. Várias povoações de beira de estrada desfilam, umas atrás das outras, mas logo dão lugar a uma zona industrial e a alguns campos cultivados, onde se vêem os pivots de rega, aquelas estrutura mecânicas típicas da paisagem ribatejana e alentejana. Acabaram as subidas e as descidas, as serras já não nos fazem companhia e Ponte de Sor é sempre a direito, não tem nada que enganar. No entanto, não temos a certeza se a cidade é ribatejana ou alentejana. Talvez se veja a si mesma como as duas.

Ponte de Sor é simpática e aqui a arte urbana convive lado a lado com o casario branco e amarelo e a zona ribeirinha ao longo da Ribeira de Sor presta-se a um passeio demorado. A visitar também sem pressas o Centro de Artes e Cultura, instalado na antiga Fábrica de Moagem de Cereais e Descasque de Arroz, hoje com a fachada azulíssima. É isso, Ponte de Sor, cor por todo o lado.
Deixamos a cidade e, novamente sempre a direito, só resta pisar um pouco mais no acelerador e ir apreciando os túneis formados pelas copas das árvores que aparecem amiúde e ver desfilar os marcos, alguns instalado à sombra dos sobreiros. Daqui a pouco, Alentejo profundo adentro, talvez possam descansar à sombra de um chaparro.

Antes, porém, vem a barragem de Montargil e a EN2 faz-nos seguir com as suas águas mesmo ao nosso lado esquerdo. Há por aqui várias vilas e resorts e oferta de actividades náuticas em abundância. Mas há também uma pequena praia fluvial imediatamente antes da povoação de mesmo nome, estando a vila, curiosamente, instalada num monte. A paisagem não engana, chegámos ao Alentejo.


Antes de chegarmos a Mora vale a pena um desvio até ao Fluviário e Parque Ecológico do Gameiro. O Parque possui uma praia fluvial onde demos o nosso mergulho do dia após a bela caminhada nos seus passadiços ao longo da ribeira de Raia. São apenas 1,3 kms lineares, cerca de 20 minutos para cada lado a fazer ranger a madeira. A vegetação é abundante e diversos painéis informativos dão-nos conta da diversidade da flora e fauna locais. Este é um lugar a voltar, uma vez que é possível continuar a caminhar no final dos passadiços por uma zona de montado alentejano, num percurso circular de 5,5 kms que, por falta de tempo, não fizemos neste dia.
Assim como não explorámos Mora nem Brotas a pé, como merecem. Apenas deu para perceber que Mora veste de amarelo e Brotas de azul e amarelo. O verde fica para as oliveiras que compõem a vizinhança destas povoações.

E chegamos a uma mítica marca ou, neste caso, marco: o km 500 à passagem da aldeia do Ciborro. Ao longo do último século a povoação viu a estrada passar de terra batida a empedrada e, depois, a asfaltada e orgulha-se de ter crescido à medida que a Estrada se ia desenvolvendo.

Em Montemor-o-Novo é obrigatória uma paragem. Aqui está o nosso castelo do dia. Foi lá no alto do monte, com vista da EN2, que a antiga vila conquistada por D. Afonso Henriques aos mouros começou por se instalar e desenvolver. Hoje o recinto já não está todo muralhado, mas o que resta proporciona um ambiente fantástico. Entramos pela Porta da Vila com a Torre do Relógio ao seu lado e caminhamos por entre o mato passando pelas ruínas de antigas igrejas, do Paço dos Alcaides e do Convento da Saudação, num espaço largo que nos faz imaginar como seria grande a arquitetura e intenso o dia-a-dia da urbe há séculos.


Foi a partir do século XVI que se deu o abandono do castelo e a passagem dos habitantes para o arrabalde. Cá em baixo, a actual Montemor-o-Novo é igualmente digna de um passeio. As ruas estreitas do centro histórico deixam espreitar o castelo, sinal da sua dependência ainda, mas muitos outros elementos há para apreciar. Desde logo, as suas fontes monumentais, como a Fonte de Nossa Senhora da Conceição e a Fonte Nova (Chafariz do Besugo), ambas junto aos Paços dos Concelho. Mas também algumas casas senhoriais, igrejas e conventos e o jardim público com coreto.
Saímos de Montemor-o-Novo rumo ainda mais a sul. As rectas tornam-se mais frequentes e são cada vez mais longas. Por vezes aparece uma “curva” e sem arriscar muito podemos até atravessá-la em 5ª. Subidas? São mais ou menos isto.


Há quem ache a paisagem do Alentejo monótona e dificilmente alguém elegerá uma das suas estradas como uma das melhores para se conduzir. Não há curvas, não há desafios, não há surpresas. Precisamente por isso é que amo conduzir sobre elas. Porque posso dedicar-me em exclusivo à sua paisagem, descobrir uma fonte à beira da estrada, confirmar que há água nos charcos, rever umas vacas a pastar, perceber que há mais árvores para além dos chaparros, avistar ao longe um monte, ver desfilar os marcos – os mais bonitos de toda a EN2 estão no Alentejo. E nunca me canso das estradas, incluindo a N2, transformadas em túneis de árvores por centenas de metros.

Logo a seguir a Santiago do Escoural, onde se pode visitar a sua Gruta (agora exclusivamente por marcação prévia), um desvio de menos de 5 kms por uma estrada onde mal cabe um carro leva-nos até à Anta-Capela de Nossa Senhora do Livramento, um exemplar de arquitectura popular edificada no meio de uma paisagem pura.

De volta à EN2, da Casa Branca às Alcáçovas surge a terceira mais longa recta da Estrada: 5,5 kms em que nos prepararmos para uma das paragens mais históricas de toda a viagem. Alcáçovas é a vila onde em 1479 foi assinado o Tratado das Alcáçovas. Com a Paz de Alcáçovas, para além de se pôr termo a disputas sobre a sucessão dos reinos de Castela e de Portugal, os dois reinos acordaram na divisão dos territórios do Atlântico entre si.

Crê-se que o Paço dos Henriques tenha sido o local exacto da assinatura deste decisivo documento. A visita ao edifício restaurado recentemente permite-nos ainda conhecer sobre a arte dos chocalhos, importante e antiquíssima tradição da vila. Mas o ponto alto da visita é o horto e capela do solar, construção do século XVII conhecida como Jardim e Capela das Conchas. O interior da capela está totalmente decorado com embrechados e no jardim vêem-se igualmente diversas estruturas, como a fonte, com a mesma execução técnica decorativa, uma surpresa e uma raridade na região. E Alcáçovas é ainda uma vila de fortes tradições e tipicamente alentejana nas suas ruas e edifícios, sempre agradáveis de percorrer.

Prosseguimos na condução recta, mas à chegada ao Torrão tudo muda: há curvas (verdadeiras) até se atravessar o rio Xarrama e depois subimos até chegar à vila. É aqui que pela primeira vez vemos um dos típicos postais da EN2, o da publicidade ao Nitrato de Chile nas paredes alvas do Alentejo. Mas, passado o Torrão, logo voltam as rectas. As albufeiras são várias por aqui, não espreitámos a de Vale do Gaio, junto ao Torrão, mas fizemo-lo na de Odivelas, lugar onde há uma zona de lazer com parque de merendas e possibilidade de um mergulho.

Segue-se Ferreira do Alentejo, recebendo-nos com os seus silos industriais à entrada. A Capela do Calvário é o emblema desta vila, bem diferente do que estamos habituados a conhecer, com umas pedrinhas como decoração na sua fachada. Mas Ferreira é bem bonita, com as ruas brancas e amarelas, desertas à hora da sesta. É numa delas que encontramos a Casa do Vinho e do Cante, na antiga Taberna Zé Lélito, um espaço museológico que pretende preservar e divulgar as tradições locais.

De Ferreira a Ervidel apanhamos a segunda recta mais comprida, 8 kms de pura evasão, amendoeiras de um lado e girassóis do outro, qualquer uma delas plantações até acabar a vista.


A entrada em Aljustrel faz-se, à semelhança de Ferreira, com a companhia de silos industriais. Mas nesta vila, encaixada entre dois montes, ambos miradouros naturais de onde se percebe a sua topografia traçada a regra e esquadro com uma série de ruas paralelas umas às outras, a grande atracção é o seu histórico passado mineiro. O Parque Mineiro de Aljustrel proporciona-nos diversos percursos turísticos, através dos quais conhecemos a maquinaria e estruturas associadas a esta industria, bem como os bairros dos operários.

E, por fim, de Carregueiro a Castro Verde cai-nos nas rodas a mais comprida recta da EN2: 12 kms bem medidos. Se tivéssemos tentado percorrê-la no dia anterior não o teríamos conseguido, uma vez que um fogo havia cortado o trânsito na Estrada. Neste dia fizemo-lo com a paisagem à beira da Estrada negra e com os bombeiros ainda em acções de rescaldo. O Centro de Educação Ambiental do Vale Gonçalinho, uma opção de visita aqui perto, esse, viu pelo menos as suas aves mais novas em perigo de vida. Triste.
Desfrutámos do fim de tarde na piscina, a recuperar dos 40° do dia, e deixámos o passeio pelas ruas de Castro Verde para o dia seguinte, não sem antes enchermos a barriga de carne de porto preto num dos seus óptimos restaurantes.
Por acaso, essa região do Alentejo central ainda não conheço muito bem. Montemor parece-me muito interessante 🙂
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