Vila do Bispo deve ter uma das sedes de concelho mais desengraçadas do nosso país. Não se pense, porém, que essa é desculpa para não se parar na terra doada por D. Manuel aos bispos do Algarve. Pelo contrário, se durante anos foi a simpatia (alerta de ironia) dos deliciosos petiscos (alerta de verdade) do Café Correia a fazer da vila poiso obrigatório ao jantar, hoje a Eira do Mel mantém-se para um manjar ao serão.

É a costa dramática e mítica de Vila do Bispo que nos vem imediatamente à mente, com os cabos de Sagres e de São Vicente à cabeça. Mas este é um concelho diverso. Com algumas das praias, falésias e promontórios mais bonitos de Portugal, sim, mas também com aldeias interiores, aldeias piscatórias, fortalezas, monumentos megalíticos e até uma ermida onde o Infante de Sagres ouvia missa.


Comecemos pelas suas aldeias. Pedralva é talvez a aldeia mais pitoresca e carismática do concelho. E, para mim, inesquecível. Corria o Verão de 2002 quando o pai leu no Expresso que uma pizzaria nova tinha aberto numa aldeia perto do Zavial, onde passávamos férias. Não era a pizza que lhe interessava, claro, antes a possibilidade de conhecer mais um sítio. Lá fomos em família até Pedralva, mas lá chegados percebemos que não fomos os únicos: metade da Costa Vicentina parecia ter pensado o mesmo. A espera demorada para experimentar a Pizza Pazza (algo que não mudou) fez com que pudéssemos admirar a tranquilidade da aldeia quase esquecida. A esmagadora maioria das casas estava em ruína e os seus habitantes contavam-se por uma mão. O pai logo pensou em comprar ali uma casa e, se não o fez, outros fizeram por ele. Em 2010, após um processo de aquisição e recuperação do edificado por parte de uns forasteiros igualmente embevecidos com o lugar, a aldeia de Pedralva “abriu” oficialmente na sua nova faceta de projecto turístico. Nunca lá pernoitei, mas já lá voltei diversas vezes e é sempre um encanto redescobrir o casario branco da interior Pedralva protegida por montes.




Igualmente dominadas pelo casario branco, Salema e Burgau são, pelo contrário, aldeias banhadas pelo Atlântico – e o Burgau é a última praia e povoação da Costa Vicentina. As suas ruelas são estreitas e a constante presença de barcos não engana, estas são aldeias piscatórias. A única azáfama, mesmo nos meses mais concorridos, está precisamente no momento da chegada do peixe aos seus pequenos portos instalados no areal da praia de cada uma das povoações. A tradição da pesca é antiga na região e na praia da Boca do Rio, entre Salema e Burgau, existem mesmo vestígios de tanques de salga de peixe da época romana.

A paisagem do imenso e largo vale da Boca do Rio é muito bonita, uma fértil várzea verdejante. É um contraste com as arribas altas e escuras deste troço da costa onde esta “deixa de ser risonha e torna-se pedregosa e sáfara”, como escreveu Raul Proença no volume do Guia de Portugal dedicado ao Algarve.

Na vertente este da praia da Boca do Rio, acima da arriba encontramos o Forte de São Luís de Almádena; antes havíamos passado pelo Forte da Figueira e mais para diante havemos de dar com o Forte do Burgau. São todas fortificações do século XVII, construídas com o objectivo de defender os núcleos piscatórios dos ataques de piratas e corsários.


Porém, antes de nos dedicarmos às fortalezas e aos lugares mais fantásticos da costa de Vila Bispo, façamos uma paragem lá para os lados do Zavial, uma das praias mais concorridas da região, para espreitar um dos Menires do Padrão, monumento megalítico que testemunha a longa e distante ocupação humana neste lugar.


Não tão antiga, mas já a caminho do sexto ou sétimo centenário, a Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe é uma surpresa à beira da estrada N125 entre Budens e Raposeira. Dedicada ao culto da Virgem de Guadalupe, a protectora dos navegadores, não se sabe com certeza quando terá sido construída – século XIV ou XV -, mas diz-se que aqui ouvia missa o Infante D. Henrique quando residia na sua quinta da Raposeira. Em estilo romano-gótico, o interior da Ermida é simples, embora possua uns pormenores muito interessantes, em especial a decoração dos seus capitéis, onde vemos esculpidas uma cabeça de boi e uma cabeça humana. Um edifício de apoio à Ermida acolhe uma exposição permanente sobe a vida de D. Henrique, o Infante que escolheu viver os seus últimos dias em Sagres.



Estamos quase a chegar a Sagres, mas antes há que desviar até à costa ocidental de Vila do Bispo, começando por uma visita à Cordoama, uma das praias mais bonitas do nosso país e dona do melhor pôr-do-sol. Contemplá-la do alto das falésias enche a alma, mas percorrer o areal entre a Cordoama e o Castelejo faz-nos perceber que a perfeição pode sempre ser aprimorada.

Torre de Aspa (o rochedo mais alto da costa algarvia), Ponta Ruiva, Telheiro e Pedra das Gaivotas são pontos da costa onde a nossa imaginação vai fluindo até chegarmos ao Cabo de São Vicente. Aqui perdemos o fôlego e deixamo-nos arrebatar irremediavelmente.



A extremidade Sudoeste da Europa era o “promontorium sacrum” para gregos e romanos, o lugar onde à hora do poente se via o sol cem vezes maior do que em qualquer outro lugar da Terra e onde se ouvia ruidosamente esse mesmo sol a abraçar o mar. Era o lugar onde os deuses descansavam à noite. E, diz-se, foi o lugar onde o Infante tinha a sua vila e onde acabou por morrer em 1460.


A paisagem entre os dois cabos, São Vicente e Sagres, é das mais impressionantes que qualquer um de nós, terráqueos, terá a oportunidade de ver na sua vida terrena. “Austera grandeza”, “costa atormentada”, “grandeza amarga”, “melancolia áspera”, “beleza trágica”, enfim, “terra indefinida e plana como um pensamento doloroso que se obstina e não consegue fixar-se”, tudo expressões do mesmo Raul Proença. Já Raul Brandão, na sua obra “Os Pescadores”, não deixa a experiência por menos: da Ponta de São Vicente à Ponta de Sagres “o promontório é um punho nodoso, com dois dedos estendidos para o mar”, um “grande sítio para se ser devorado por uma ideia”.

A melancolia destas escarpas silenciosas apenas é quebrada pelo som gritante do vento, o mesmo que faz com que este seja um lugar ermo e despido de vegetação. Do Cabo de São Vicente, com o seu farol, à Ponta de Sagres é uma curta viagem onde se torna obrigatória uma paragem quer no Forte do Beliche quer na Praia do Beliche.


À chegada ao “Cabo do Mundo”, o lugar onde “a terra acaba e o mundo começa”, já estamos plenos de emoção. Visite-se, porém, a Fortaleza e a Ponta de Sagres para se perceber uma vez mais que ainda cabem mais umas pitadas de grandeza neste cenário imenso – um monumento natural com um quilómetro de comprimento por 300 metros de largura de pura inspiração.

O topónimo Sagres deriva do latim “sacris”, de significado “sagrado”. Na época em que o Infante D. Henrique para aqui veio, em meados do século XV, não havia qualquer povoação em Sagres. A Escola de Sagres era, na verdade, em Lagos, a vila onde um leque variado de homens de saberes diversos se reuniu para produzir conhecimento e que permitiu a epopeia dos Descobrimentos. Mas foi no deserto de Sagres que o Infante escolheu viver e morrer, provavelmente pelo seu poder místico e ascético. E esse poder sente-se, efectivamente, ao deambularmos por lá. Não são sequer necessárias as lendas que nos contam que do promontório saíram as caravelas para dar novos mundos ao mundo – o que, aliás, não aconteceu. Basta contemplar a paisagem do recorte destas escarpas e do mar infinito e sentir o poder deste “colosso duro e negro”, como tão bem escreveu Raul Brandão.


Já sem perigo de sermos atacados por piratas como Francis Drake, não há melhor do que o ponto continental mais a sul do nosso país para terminar esta viagem pela Costa Vicentina. A vila de Sagres não é hoje o deserto do século XV nem está tão ignorada como no final do século XX, mas permanece esquecida o suficiente para que lá possamos recolher-nos em paz e felicidade.