Le Havre, a modernista

Le Havre é de fundação antiga, de 1517, mas nada resta dessa época. A cidade que se desenvolveu de forma galopante no século XIX, à boleia do tráfego comercial e de passageiros em trânsito no seu porto transatlântico do Canal da Mancha, não muito longe de Paris, foi uma das mais destruídas da Europa na II Grande Guerra Mundial. Cidade portuária de importância estratégica, os alemães ocuparam-na logo em 1940. A Guerra foi evoluindo e a Europa ia caindo às mãos dos nazis, e Le Havre mantinha o seu posicionamento geográfico estratégico. Na operação Aliada que resultou no que hoje conhecemos como Dia D, a cidade era um grande objectivo do desembarque. Os bombardeamentos Aliados de Setembro de 1944 destruíram 80% do seu centro histórico e dos 160 mil habitantes no início da Guerra restaram apenas 30 mil no final. Uma destruição trágica e avassaladora.

Impunha-se a reconstrução de Le Havre, elevada a prioridade nacional, e a decisão de como o fazer esteve à altura do momento histórico que se vivia no pós-guerra, servindo de símbolo do renascimento de um país. Para o efeito, foi escolhido Auguste Perret. Arquitecto experiente e modernista, trabalhava com betão armado, material decisivo para o sucesso da reconstrução urbanística da cidade. Foi totalmente redesenhada no sentido de ser um modelo de cidade nova do século XX, de tal forma que a Unesco elevou Le Havre a Património Mundial da Humanidade em 2005.

Renascida literalmente dos escombros e das cinzas, hoje Le Havre é o maior porto de mercadorias de França e o segundo mais movimentado logo após Marselha. E é reconhecida como a cidade da arquitectura e a capital do modernismo.

Auguste Perret traçou longas e largas avenidas. A Avenue Foch, que sai da praia e nos deixa no Hotel de Ville, é tão só a mais larga de França, com 28 metros. Um eléctrico sob carris na placa central percorre-a, enquanto que as suas laterais estão ocupadas com blocos de apartamentos não muito altos. Esta geometria pode não agradar a muitos, chegando alguns até a considerá-la algo fria. Mas, na parte que me toca, agrada-me, e os diversos pormenores decorativos na fachada dos prédios e as peças de arte urbana pelas ruas ajudam a que muitos mais sejam igualmente fãs deste urbanismo. Por exemplo, observe-se com atenção as portadas das janelas: cor e movimento dão vivacidade à cidade.

A Praça do Hotel de Ville era no pós-guerra uma das maiores do mundo e o atelier Perret atribui-lhe uma função determinante e central na recuperação urbanística da cidade. Funcionando como uma praça real, está flanqueada por edifícios algo monumentais e donde saem e confluem largas avenidas. É, pois, uma praça aberta. Ao mar, através da Avenue Foch, já se disse, mas também ao rio, com o seu porto, através da Rue de Paris.

Antes de lá chegarmos, porém, damos uma olhada à Bassin du Commerce, com a sua ponte moderna e barquinhos de vela que por lá se divertem.

Até que, sem qualquer resistência, nos deixamos tomar pela força do Vulcão. Aquelas curvas não enganam, é um projecto do brasileiro Óscar Niemeyer. Inaugurado em 1982 como Casa da Cultura, hoje continua o principal centro cultural da cidade e acolhe ainda a biblioteca. Niemeyer, à semelhança de Perret, era também fã do betão armado, mas com o seu Vulcão deu um novo símbolo a Le Havre materializado em dois edifícios alvíssimos, um maior do que o outro, que irrompem do solo de uma forma harmoniosa. A maior destas “esculturas” é um teatro e sala de espectáculos e a mais pequena uma biblioteca, logo, pode e deve ser visitada, não apenas para vaguear pelos livros mas também para conhecer os espaços interiores tão bem criados. Entre estes dois edifícios há um largo espaço urbano pronto a ser fruído por todos nós – dá mesmo vontade de subir pelas rampas do vulcão, como vimos as crianças fazer.

Perto do Vulcão, não podemos perder uma das visitas guiadas ao Appartement Témoin, o apartamento modelo projectado por Auguste Perret, um exemplo do estilo de vida e decoração dos anos 1950. Muitos sorrisos no rosto se esboçarão, ao dar com salas preenchidas com objectos que há muito não víamos e que, na verdade, serviram de inspiração para muitos que ainda hoje fazem parte das nossas vidas.

Mas talvez o maior símbolo desta Le Havre reconstruída seja a Église St Joseph, uma obra prima do modernismo com a sua torre a elevar-se aos 107 metros de altura, sendo visível de quase qualquer ponto da cidade. A anterior igreja havia ficado em ruínas, tal como a maioria do centro histórico, já se disse. Impunha-se a construção de uma nova igreja e tal não escapou aos planos de Perret. Construída entre 1951 e 1957 em betão armado, claro, combina força e poder à elegância e acaba por funcionar também como um monumento de memória às vítimas da guerra. A sua silhueta faz lembrar vagamente o Empire State Building de Nova Iorque. Quanto ao interior da igreja, o poderio da engenharia aliado à estética continua: o vidro domina, com 12768 vitrais coloridos. Tudo é geometria e equilíbrio. E as cadeiras da Igreja fazem lembrar as do cinema, quer na forma quer no conforto. Outra curiosidade, de qualquer ponto se vê o altar.

Já junto ao mar a fazer-se rio, o MuMa – Museu Malraux, leva-nos para outras paisagens. Tirando o Museu d’ Orsay de Paris, este é o melhor museu do impressionismo. Há por aqui uma série de obras do local Raoul Dufy e do vizinho Éugene Boudin, não faltando as falésias de Fécamp de Monet, a tromba de elefante de Étretat de Boudin, bem como muitas vacas normandas e muitas mais obras de outros grandes mestres.

Mas a dinâmica arquitectónica de Le Havre continua. As docas, como que anunciadas pela escultura Catène de Containers, no final da Rua de Paris, têm uma série de edifícios cuja arquitectura chama a atenção. Desde logo o da Escola Superior Marítima, mas sobretudo o Les Bains des Docks, obra do arquitecto Jean Nouvel – apesar das nossas insistências, foi com muita pena que não visitámos o interior deste complexo aquático; para a próxima há que levar fato de banho e tirar a senha para ir dar umas braçadas.

E, para o fim, uma curiosidade sobre a geomorfologia de Le Havre. Quando estamos no seu centro histórico não parece, mas a cidade não é totalmente plana e desenvolve-se sobre duas cotas. Para vencer a altura, a cidade baixa esta ligada à cidade alta por uma série de escadarias. A Escadaria de Montmorency é talvez a mais pitoresca.

Fosse a Primavera da nossa visita convidativa para banhos de mar e talvez pudéssemos experimentar a água do Canal da Mancha. De qualquer forma, o frio não impede de presenciar a alegria de uma Le Havre também de veraneio, com uma animada frente de praia com cerca de 2 kms. Ainda não estava completa a montagem das singulares barracas de praia na areia, mas muitos aproveitavam a orla para se desafiarem no skatepark, jogarem basquete e volei, esplanarem nos bares e restaurantes ou, como nós, distraírem-se com os barcos à vela no mar. Um cenário que tanto inspirou os impressionistas que ainda não nos cansámos de apreciar a este ponto da viagem pela Normandia.

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