Assuão

Assuão é a mais bonita povoação à beira Nilo. O rio corre ao seu lado, cria uma série de ilhas e as feluccas, os barcos mais castiços do Nilo, zanzam por ali, desfrutando de um cenário absurdamente exótico. A margem ocidental é puro deserto, com as montanhas de areia a erguerem-se abruptas desde a água do rio. A margem contrária é baixa e nela e nas ilhas não é raro encontrarmos uma exuberante vegetação de palmeiras.

Historicamente, os egípcios acreditavam ser este o lugar onde o Nilo começava. A primeira catarata do Nilo, uma zona rochosa que produzia redemoinhos na água que tinham de ser vencidos, formava uma barreira natural entre o Egipto e a Núbia (região que vai do sul de Assuão a Cartum, no Sudão). Esta era a região ancestral para onde os antigos egípcios lançavam expedições desde Assuão em busca de bens luxuosos como peles de animais, marfim, ébano, incenso e ouro. Daí se vê a importância estratégica de Assuão, que por ser um porto no Nilo foi prosperando muito à conta do comércio. Mas a partir do Império Médio (2055 a 1650 a.C.) e, sobretudo, no Império Novo (1550 – 1069 a.C.) as relações entre o Egipto e a Núbia alteraram-se, com invasões e conquista deste território a sul. O muito bom Museu da Núbia, em Assuão, é uma verdadeira aula de história ao longo dos tempos, desde o paleolítico até à Núbia cristã e islâmica, contextualizando a história local e traçando paralelismos com o mundo. Inaugurado em 1997, o seu edifício é construído em arenito e granito vermelho locais e possuiu um jardim.

Ao redor de Assuão há várias aldeias núbias, como Gharb Soheil e as da ilha Elefantina, esta última a uma curtíssima viagem de barco desde o centro da cidade. Tradicionalmente, o povo núbio, de pele negra e olhos claros e traços finos, era guerreiro e dedicava-se à caça e à pesca; hoje esta última actividade ainda é parte da sua vida, muito pela intrínseca ligação ao rio, mas largaram as armas e a caça. No entanto, a ilha Elefantina é ainda uma zona essencialmente rural e caminhando por ela podemos perceber a cultura, arquitectura e modos de vida deste povo, aqui se confundindo Egipto e Núbia nas suas ancestrais ligações. Por entre o muito pó e ruína do edificado – este é um lugar estranho em termos urbanísticos para os padrões europeus – destaca-se a cor das casas das suas duas aldeias, Siou e Koti. Na verdade, as casas núbias são uma das características mais distintas desta cultura. Construídas em adobe e barro, são grandes e espaçosas e as várias divisões rodeiam um pátio. Para além da cor, as fachadas são ornamentadas e têm padrões geométricos em baixo relevo. Como a zona rural, o gado, os campos e as palmeiras e tamareiras são vizinhas destas casas.

Para quem não se importa com o pó e com comodidades relativas, há alguns alojamentos locais na ilha Elefantina, sendo o Baba Dool e sua localização privilegiada pelo menos digno de um sumo à beira Nilo. E merecem ainda uma olhada o museu local Animalia e o Templo de Abu, hoje em ruínas. Aliás, o nome antigo de Elefantina era “abu”, palavra que em egípcio está relacionada com elefantes, demonstrativo do comércio de marfim entre o Egipto e a Núbia.

Infelizmente, perdemos o Nilómetro em Elefantina, o marco que media a altura da água, importante porque era em função dela que se definia o valor do imposto a pagar no Antigo Egipto.

E já por Assuão, tentámos seguir pela sua corniche ao longo do rio, mas como está em grande parte tapada pelos enormes barcos de cruzeiro (alojamentos flutuantes) e restaurantes, o melhor mesmo foi voltar ao barco – felucca ou outro – e navegar pelo Nilo nesta linha de água cheia de ilhotas e com o deserto como parede. A melhor hora para o fazer será antes do final de tarde, de forma a coincidir com o pôr-do-sol.

Damos a volta à ilha de Elefantina, concluindo que o resort da Movenpick que está instalado numa das suas pontas não tem nada a ver com a humildade e autenticidade da restante ilha. Pouco mais adiante, nova ilha no Nilo, entre a Elefantina e a montanha, um jardim botânico onde a vegetação é ainda mais luxuriante.

Mas é a montanha escura do deserto que mais impressiona e seduz. Na margem oriental o Nilo traz à terra a fertilidade que tem permitido desde há milénios que a vida humana seja aqui possível. Mas na margem ocidental apenas são possíveis os túmulos que se vêem no alto do monte: os templos dos nobres do Império Antigo e Médio e o Mausoléu de Aga Khan. Este último é impactante mesmo à distância e foi construído nos anos 1950 para o líder espiritual dos ismaelitas, Aga Khan III.

São inúmeras as feluccas nas águas do Nilo, lindas com as suas velas abertas. E é um prazer receber no rosto e corpo a brisa mais fresca do final de tarde. E os locais sabem divertir-se e aproveitar o que a natureza lhes deu. Na margem ocidental, a tal do deserto, um grupo aproveita para banhar-se na água do Nilo perto da ilha Seluga, pouco antes da aldeia núbia Gharb Seheil. Sobem ao nosso barco de volta para Assuão e depois de, curiosos, perguntarem de onde vimos e quais os nossos nomes, tentando soltar algumas palavras em inglês, a festa instala-se e ao som da música vão dançando.

Já em Assuão, vale a pena passear pelo seu souk, com muito comércio para os locais e pouco turístico.

A fechar o dia, nada como um jantar no Old Cataract, o mítico hotel que acomodou uma série de personalidades e onde Agatha Christie terá escrito o seu “Morte no Nilo”. A refeição no terraço do Oriental Kebabgy, bem junto ao Nilo, ficou ao preço de um qualquer restaurante de Lisboa, com o bónus de podermos ter usufruído parte do ambiente luxuoso ao estilo colonial desta instituição egípcia. E o nome Old Cataract vem, precisamente, de ser este o ponto onde se formava a primeira Catarata do Nilo.

Mas em Assuão e suas redondezas há mais para ver. Desde logo, o muito interessante “Obelisco Inacabado”. A região é famosa pela quantidade das suas pedreiras e, em especial, a qualidade do seu granito. Os antigos egípcios usavam a pedra, não apenas o granito, mas também o calcário e o arenito, para a construção de estátuas, templos e obeliscos e a de Assuão era uma das melhores e mais utilizadas, fornecendo todo o império. No caso dos obeliscos, um dos mais emblemáticos monumentos que o Antigo Egipto nos legou, a maior parte eram extraídos das pedreiras de granito de Assuão e, precisamente, da Pedreira dos Obeliscos Inacabados saiu grande parte dos obeliscos, incluindo o obelisco de Cleópatra em Londres. O sítio foi descoberto no princípio do século XX, depois de ter estado coberto de areia por milhares de anos. Aqui vemos, ainda deitado, um obelisco inacabado, um imenso monólito que terá sido comissionado por Hatchepsut para o templo de Amon, em Karnak. Todavia, a obra parou, talvez devido a falhas na pedra e ao aparecimento de múltiplas fissuras. Este sítio ajuda a mostrar e entender como os obeliscos eram feitos, embora existam diferentes teorias para explicar esta incrível empreitada de engenharia. A pedra do que viria a ser o obelisco era talhada directamente no chão, usando-se objectos para “limar” de forma a contornar a pedra na forma de obelisco; depois de delimitada a superfície, era cortada e libertada do solo, içada por uma espécie de alavancas e colocada num género de trenó de rodas; por fim, o obelisco era colocado num barco que o transportava até ao destino. Aí chegado, era então levantado com a ajuda do seu próprio peso e da força da gravidade e puxado por cordas. Quanto à decoração das suas quatro faces, talvez esta acontecesse quando o obelisco ainda estava deitado na pedreira, e só depois de ficar em pé é que seria decorada a sua quarta face.

E, claro, ponto alto de qualquer viagem a Assuão é a visita ao Templo de Philae, a uns 20 minutos de distância do centro da cidade. A construção das barragens mudou muitíssimo a paisagem da região, implicando a transferência de local de templos e criando o maior lago artificial do mundo, o Lago Nasser. Os planos para controlar a corrente de água e a inundação do Nilo vinham já do século XIX, construindo-se diques e canais. A primeira Barragem de Assuão foi construída entre 1898 e 1912 e foi desenhada para colocar um fim na inundação anual do Nilo de forma a poder distribuir a água mais regularmente e possibilitar a irrigação da área cultivada durante o ano, estendendo-a e permitindo duas ou três colheitas anuais. Já a Grande Barragem foi construída entre 1960 e 1971, sete quilómetros acima da primeira barragem. Esta criou uma estação hidroelétrica que se pretende que leve ao desenvolvimento industrial do Vale do Nilo, para além de eliminar as inesperadas inundações e a criação de uma maior área de cultivo, bem como a possibilidade de navegação do Nilo.

Acontece que esta enorme obra de engenharia implicou o realojamento de diversas aldeias núbias e, após pressão e esforços da Unesco, a transferência de vários templos e monumentos do Egipto Antigo – para se ter uma ideia, foram 18 os sítios relocalizados ou doados (Philae, Daboud – doado a Madrid, Kertassi, Taffa – doado ao Rijksmuseum, Holanda, Beit El-Wadi, Kalabsha, Dandur – doado ao Metropolitan Museum, NY, Gerf Hussein, Dakkah, Maharraqah, Wadi Sebua, Amada, Derr, Anibah, El-Lessiya – doado ao Museu Egípcio de Turim, Qasr-Ibrim, Abu Simbel, Abouda).

Em 1902 a ilha de Philae passou a estar submersa grande parte do ano pela construção da Barragem de Aswan e em 1960 a subida das águas do Lago Nasser deixou permanentemente submersos os monumentos na ilha. A partir de 1972 iniciaram-se, então, os trabalhos para a sua re-localização na ilha vizinha de Agilkia, a cerca de 300 metros distância, redesenhando-se esta Ilha para que parecesse o mais possível com a original. Ou seja, é Agilkia que visitamos hoje quando queremos conhecer o Templo de Philae. E para isso, se não formos num tour organizado, há que negociar duro o preço do barco para a dita ilha, uma curta viagem pelo Lago Nasser.

A chegada a Philae, o primeiro templo que nos tocou visitar no Egipto, é muito bonita, com os edifícios antigos praticamente em cima da água. Dedicado ao culto de Isis, a deusa do amor e da cura, o ideal de mulher e a mãe do universo, o lugar já existia desde a 26ª dinastia, mas foram os ptolomeus que o reconstruíram e desenvolveram, durante a 30ª dinastia. É, pois, um templo ptolomaico, o último construído no estilo clássico no Egipto, um exemplo da antiga cultura egípcia a inspirar a imaginação grega.

As primeiras estruturas do período ptolomaico datam de 305-30 a.C. e as últimas do período romano, de 30 a.C. – 306 d.C. e é considerado um dos templos mais bem preservados da época greco-romana. Atraiu peregrinos desde há milhares de anos, sobretudo do Mediterrâneo e Norte de África, tendo sido um dos últimos templos pagãos cuja devoção manteve-se mesmo após a chegada do cristianismo ao Egipto – foram cerca de 700 anos ininterruptos de peregrinação, tendo fechado oficialmente portas apenas em 537. E o sítio é também importante porque foi aqui que foram gravados os últimos hieróglifos, no ano de 394, tendo depois dessa data o Egipto mudado a sua língua escrita para o cóptico (e, depois, para o árabe, em 706).

Imediatamente antes do Grande Templo de Isis, logo nos aparece o Quiosque de Nectanebo I, um dos mais antigos monumentos de Philae, construção iniciada no reinado deste rei, da 30ª dinastia, tendo sido mais tarde restaurado por Ptolomeu II. Este Quiosque tem colunas com capitéis com a cabeça de Hathor, a deusa da maternidade, amor e música na religião egípcia antiga, e a sua função é semelhante à da Birth House no Grande Templo de Isis.

O Grande Templo de Isis é a principal e mais magnífica estrutura do complexo. Antecedido por um pátio com colunas de ambos os lados, o seu primeiro pilone (a porta de entrada) é monumental, vendo-se Ptolomeu XII (80 – 51 a.C.) simbolicamente em luta com os seus inimigos.

Depois do primeiro pilone, o pátio central tem à esquerda a referida Birth House, espaço nos templos grego-romanos separado do principal destinado a celebrar o nascimento do filho da divindade principal do templo e onde os rituais eram executados (este dedicado ao deus Hórus, filho de Isis). E para lá deste pátio segue-se novo pilone – decorado por Ptolomeu VIII – e, depois, a Sala Hipostila e o santuário onde era guardada a imagem sagrada da deusa Isis. As paredes de todos estes lugares possuem relevos incríveis dos reis e da mitologia egípcia.

À esquerda está a Porta de Adriano, que viramos em grande plano do barco, e o Nilómetro. Há ainda a possibilidade de subir ao “terraço” do santuário, onde se obtém belas vistas e onde fomos pela primeira vez na viagem confrontadas pelo pedido de bakchich por parte de um segurança do templo – tínhamos bilhete, pelo que não cedemos, mas nas vezes seguintes onde a entrada era vedada e nos foi proposta também não cedemos, verificando que alguns turistas lá acabam por cair na cantilena, tentando ver para além do permitido em troca de um dinheirinho extra. Para além das vistas do Lago, de cima percebemos bem o clássico Templo de Augustus, numa ponta da ilha, dedicado ao primeiro imperador romano que reinou o Egipto desde 30 a.c. a 14 d.C., e uma das primeiras estruturas construídas pelos romanos nas suas províncias orientais.

Já fora do Grande Templo de Isis, visita ainda a outras duas estruturas do complexo, ao Templo de Hathor e ao Quiosque de Trajano, este último grandioso.

Veríamos nos próximos dias da viagem que este Templo de Philae é uma boa introdução ao plano arquitectónico e decorativo dos demais templos do Antigo Egipto. E, sobretudo, que não são sempre a mesma coisa, desejando-se conhecer mais e mais.

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