Na margem ocidental do rio Nilo, em Luxor, fica o Vale dos Reis, o deserto longe da cidade onde os reis se fizeram enterrar, fazendo desta uma imensa necrópole. Pode soar mórbido, mas se incluirmos na descrição que os seus templos funerários e túmulos são grandiosos exemplos arquitectónicos e artísticos, onde a cor das decorações nas suas paredes resiste e arrebata por completo, o interesse aumenta. E se acrescentarmos que foi aqui que foi descoberto o túmulo de Tutankhamon com as suas infinitas riquezas praticamente intactas, então o fascínio pelo Egipto ganha rédea solta. É um lugar tão fabuloso que no dia da partida de Luxor já fazíamos planos para voltar.

O dia 4 de Novembro de 1922 marcou definitivamente a história da egiptologia e da arqueologia. Nesse dia, após anos de trabalho, Howard Carter deu finalmente com a entrada do tão procurado túmulo do rei menino. Patrocinada por Lorde Carnarvon, a empreitada é até hoje considerada um dos maiores feitos arqueológicos e fez o Antigo Egipto entrar definitivamente na cultura popular. A máscara dourada do faraó tornou-se o paradigma do esplendor do mundo faraónico, mas este é “apenas” um dos 5398 objectos encontrados neste túmulo no Vale dos Reis, em exposição no Cairo juntamente com o restante tesouro, incluindo o sarcófago (os reis faziam-se enterrar acompanhados de todos os objectos e bens que consideravam que iriam necessitar para a sua outra vida no além). A ironia é que um dos faraós menos conhecidos da sua época – terá vivido apenas 18 anos e não deixou filhos – é hoje, mais de três milénios depois, o mais famoso dos faraós, um verdadeiro ícone pop, o rei Tut. Nascido durante a 18ª dinastia do Império Novo, em 1341 a.C., filho de Akhenaton, o rei herege que pôs fim ao politeísmo para admitir apenas um deus (Aton), o seu nome de baptismo foi Tutankhaton, “imagem viva de Aton”, mas após a sua subida ao trono por morte de seu pai mudou-o para Tutankhamon, “imagem viva de Amon”. Ao enigma da sua vida e ao mistério no processo de descoberta do seu túmulo, juntou-se posteriormente a maldição da sua múmia. Várias pessoas terão morrido em circunstâncias esquisitas e a cultura popular não resistiu a traçar ligações entre ambas. A lenda havia nascido.

A riqueza sem precedentes do túmulo de um rei cujo reinado foi curto e não foi nem marcante nem importante, e nem sequer foi mencionado pelos seus sucessores, explicar-se-á precisamente pela combinação do seu esquecimento – garantindo que o túmulo ficasse intocado por milénios (a maioria dos túmulos foi saqueada ainda durante a época faraónica) – e de ter vivido numa das épocas mais ricas e sofisticadas do Antigo Egipto. Mais, o facto de Tutankhamon ter invertido a decisão monoteísta de seu pai poderá ter levado a que os sacerdotes deixassem mais oferendas / riquezas no seu túmulo; e outros há que defendem a hipótese de que este túmulo fosse para outro faraó ou até para a madrasta Nefertiti, mulher de Akhenaton.

E porquê a escolha da margem ocidental de Luxor, de frente para o Templo de Karnak e para o Templo de Luxor, para descanso eterno dos faraós? Os reis/ faraós a partir da 18ª dinastia do Império Novo não quiseram cometer os mesmos erros dos seus antecessores que ergueram as pirâmides, monumentos indiscretos que todos conheciam a localização e foram pilhados logo a seguir ao enterro dos seus donos. Escolheram, então, um vale isolado e de difícil acesso dominado por uma montanha com forma natural de pirâmide. Símbolo de renascimento e da da vida eterna, era nesta margem ocidental que o sol se punha, de forma a renascer a oriente. E separaram a localização da procissão funerária – templo funerário – do lugar de enterro – túmulo funerário. A ideia era boa, os trabalhadores que construíram e decoraram os túmulos eram transportados até ao local vendados, mas mesmo assim os túmulos acabaram saqueados. A excepção do de Tutankhamon não o é por inteiro, uma vez que também este chegou a ser violado logo a seguir ao seu enterro, embora os ladrões não tenham levado muito, permanecendo depois esquecido até à nossa era.

A todo o tempo são descobertos novos tesouros e aguarda-se com expectativa a descoberta de um novo túmulo. O KV62 – kv significa “king’s valley” e o número a sua ordem de descoberta – foi o último túmulo descoberto e pertence, precisamente, a Tutankhamon e é uma das maiores atracções do Vale dos Reis. No entanto, pese embora toda a fama, o túmulo de Tutankhamon não merecerá visita mais do que outros. O difícil é escolher.

Para chegar ao Vale dos Reis desde o centro de Luxor a melhor opção é através de um tour privado previamente combinado com os monumentos a visitar – são inúmeros, é de lembrar que em Luxor estão um terço de todos os monumentos antigos do mundo. De carro é quase uma hora de viagem e os monumentos estão espalhados pelo deserto, pelo que a passagem de uma margem à outra do Nilo por barco não será uma boa opção. O bilhete para o Vale dos Reis custa cerca de 13 euros (em 2022) e dá direito à visita a três túmulos de um total de oito abertos (vão variando, por questões de conservação – para se ter uma ideia, o pó e a respiração que nós, visitantes, transportamos connosco é susceptível de colocar em causa os túmulos e a sua decoração). Para além destes, há túmulos que exigem um bilhete extra, como o de Seti I (KV17 – 51 euros, o mais fabuloso), Tutankhamon (KV62 – 15 euros) e Ramsés VI (KV9 – 5 euros). Sabendo o que sabemos hoje teríamos ficado uma semana inteira só em Luxor e com o Premium Luxor Pass, com o custo de 200 dólares, teríamos direito à entrada em todos os monumentos de Luxor, incluindo o túmulo de Seti I e o de Nefertari (Vale das Rainhas). Com apenas um dia dedicado à margem ocidental de Luxor há que ser criterioso e não muito ambicioso, de forma a conhecer-se convenientemente as maravilhas escolhidas, deixando inevitavelmente muito mais de fora.

Seguindo o conselho da nossa guia egípcia, acabámos por visitar os túmulos de Ramsés III – KV11, de Ramses I – KV16 e de Merenptah – KV8. A montanha árida onde foram escavados impressiona e quando a adentramos todo um novo mundo se nos revela. Desconhecia-se – e desconhece-se – como era a vida no além, pelo que a imaginação é que comandava as operações de decoração destes lugares. Todos os túmulos estão decorados – a decoração serviria de modelo ee são maravilhosos. E é inacreditável como tanta cor foi capaz de chegar ao nosso tempo. A construção e a decoração destes túmulos tinha início e prosseguia em vida do rei, mas não terminavam até o rei morrer, uma vez que considerava-se que tal trazia má sorte.






Ramses III – KV 11 – foi o segundo rei da 20ª dinastia, considerado um dos mais importantes e famosos reis guerreiros. Reinou durante 31 anos e os três reis que o sucederam (Ramses IV, Ramses V e Ramses VI) eram todos seus filhos. O Templo de Medinat Habu é considerado o seu maior legado. Neste túmulo destacam-se os dois pares de pilastras na entrada com cabeça de animais e na decoração as oferendas a deuses funerários, o rei com deuses e cenas astronómicas. O túmulo está ainda vivamente decorado com cenas do dia-a-dia, como a preparação de comida e armas reais, cenas religiosas e textos de vários livros. Vê-se também o ritual da Abertura da Boca, com o rei a prestar homenagem a várias divindades como Osiris e Ra. Este túmulo é um dos mais longos do Vale dos Reis, com 188 metros. O sarcófago de Ramses III está no Louvre e a múmia no Cairo.






Ramses I – KV 16 – pertenceu à 19ª dinastia. Ramses I foi rei aos 90, por morte seu irmão, e como sabia que tinha pouco tempo construiu o seu túmulo ao contrário, da base para diante, de forma a garantir tempo para o embelezar. Em vez de esculpir as paredes pintou-as, para ser mais rápido. E a ver pela colocação da câmara funerária imediatamente após o segundo corredor, a construção do túmulo terá mesmo sido apressada. A decoração mostra o rei com deuses e cenas do Livro das Portas. É um túmulo pequeno e está aberto ao público há pouco tempo. Uma curiosidade mais, a múmia de Ramses I está no Museu de Luxor, doada por Atlanta, nos EUA, para onde tinha ido parar.





Merenptah – KV 8 – pertenceu igualmente à 19ª dinastia. Tinha 4 sarcófagos e a decoração mostra o rei com deuses, cena do ritual da Abertura da Boca e cenas astronómicas, bem como cenas de diversos livros ancestrais, como o Livro das Portas, Litania de Ra, Livro da Terra e Livro dos Mortos.
O site Theban Mapping Project é uma forma de conhecermos todos os incríveis túmulos sem sair do sofá; ou recordá-los.

Mas antes destes túmulos passámos, à semelhança do que acontece com todos os visitantes da margem ocidental de Luxor, pelos Colossos de Memnon. São duas enormes estátuas, com 18 metros, que representam o faraó Amenhotep III e estão numa das entradas do seu templo funerário, o maior do Egipto. Os trabalhos arqueológicos estão em curso e terá sido por aqui que foi encontrada a estátua colossal deste rei e sua Tiye que vimos no Museu Egípcio, no Cairo. Os Colossos de Memnon já eram uma atracção nos tempos greco-romanos no Egipto e então estas estátuas eram atribuídas a Memnon, o lendário rei africano que foi morto por Aquiles na Guerra de Tróia. Ficou o nome.

Não muito distante fica o Templo de Medinat Habu, o templo funerário de Ramses III (dono do primeiro túmulo do Vale dos Reis que visitámos). Não tão visitado, é um dos mais fantásticos de Luxor, não comparável com Karnak em termos de escala, mas seguramente comparável na cor e motivos da decoração das colunas da sua Sala Hipostila. Muitas pinturas de monumentos, inclusive ao ar livre, sobreviveram milhares de anos e tal deve-se sobretudo aos antigos egípcios usarem pigmentos naturais que não só davam as cores vivas como eram muito permanentes. No caso deste Templo de Medinat Habu isso é muito evidente. E é delicioso constatar as imagens dos egípcios aqui, introduzindo novidades nas vestes e lançando moda.



À entrada, pela Porta Síria, uma estátua de Sekhmet, a deusa da guerra com cara de leão.



Após um largo espaço, o primeiro pilone monumental mostra Ramsés III vitorioso em batalha e no segundo pilone fazendo dos seus inimigos prisioneiros de guerra. Entre estes pilones fica o pátio do que era o palácio real, uma vez que o rei comissionou em pessoa a construção do templo e passava aqui muito do seu tempo, pelo que acabou por criar outras estruturas. Segue-se a tal Sala Hipostila do templo dedicado ao deus Amun e suas fantásticas colunas decoradas. E para lá dela as Capelas de Ramsés III, enquadradas pelas montanhas do deserto.


Com tanto por escolher, não visitámos nem o Vale das Rainhas nem o Vale dos Nobres e optámos por conhecer Deir el-Medina, a aldeia dos artesãos e onde estão também os seus túmulos.

A aldeia de Deir el-Medina cresceu a partir da 18ª dinastia junto às montanhas de Tebas. Delas foi extraído o calcário que juntamente com os tijolos de lama serviu de material para a construção das casas dos trabalhadores e suas famílias. Os artesãos responsáveis por escavar e decorar os túmulos reais no Vale dos Reis até ao final da 20ª dinastia viviam aqui e esta aldeia foi construída no deserto de propósito para servir de sua residência. Os seus habitantes eram relativamente letrados a até abE seria uma aldeia cosmopolita, uma vez que nela foram encontrados mais de 30 nomes estrangeiros. Mais importante, os trabalhos arqueológicos efectuados nesta aldeia permitiram-nos obter muita informação e entender como era a vida dos antigos egípcios numa série de contextos. No que respeita à morte e à passagem para a outra vida, os estratos mais baixos não tinham meios para perpetuar a sua memória em túmulos, não lhes sendo permitido viver a eternidade, tão cara às elites egípcias. No entanto, alguns acabaram mesmo por construir túmulos para si próprios. A decoração é verdadeiramente surpreendente, com cenas da vida quotidiana, sendo que esta iconografia acabou por permitir obter muita informação sobre os trabalhos agrícolas e os instrumentos usados na época.

E apesar de não terem a montanha a servir de pirâmide natural, alguns fizeram construir até uma pequena pirâmide como forma de ascenderem aos céus – uma delas foi restaurada e serve de exemplo.

Junto à aldeia dos artesãos visitámos os seguintes túmulos, todos eles acessíveis através de uma entrada estreita:


⁃ Túmulo de Sennutem (Sennedjem), artista que viveu durante os reinados de Seti I e de Ramses II, na 19ª dinastia. Herdou de seu pai a arte de decorar túmulos reais e preparou um túmulo para si e sua mulher perto de casa. O seu túmulo talhado na montanha foi descoberto intacto em 1886 e o valioso mobiliário funerário que o acompanhava incluía diversos shabtis, baús canópicos e objectos vários, alguns vendidos a diversas colecções mundo afora e outros em exposição no Museu da Civilização Egípcia, no Cairo. Este túmulo foi usado por três gerações da família, tendo sido encontradas no interior mais de 20 múmias dos seus membros. Após a estreita escadaria, há uma primeira câmara, seguida de nova escadaria que dá acesso à câmara funerária. As decorações são muito bonitas e a cor, plena de força e vitalidade, está em bom estado de conservação. As cenas decorativas representam capítulos do Livro dos Mortos.



⁃ Túmulo de Inherkha, servo e chefe dos artesãos durante os reinados de Ramses III e de Ramses IV, da 20ª dinastia. O seu túmulo contém um dos melhores exemplos artísticos desta dinastia, com cenas do Livro dos Mortos e do Livro das Portas e outras mostrando o inframundo.




⁃ Túmulo de Família, do reinado de Ramses II, 19ª dinastia. Este túmulo familiar consiste em 3 túmulos pertencentes ao pai escultor, Nakhtamon, e seus 2 filhos, Neb-en-Maat e Kha-em-Teri, que trabalhavam como servos em Deir el-Medina. A entrada transporta-nos a uma câmara com tecto abobadado, seguido de um hall transversal que leva a 3 câmaras funerárias coroadas por 3 capelas. É um dos túmulos mais fundos da aldeia. A sua pintura está praticamente intacta e segue o estilo monocromático, sobressaindo os tons amarelos.

O último lugar visitado nesta margem ocidental de Luxor foi o Templo Deir el-Bahari, erguido em honra de Hatchepsut. O cenário natural é majestoso e a sucessão de terraços e pórticos unidos por rampas que é a imagem de marca deste templo faz dele um dos mais imponentes. Deir el-Bahari, o lugar, já era espaço sagrado (há muito consagrado à deusa Hathor, protectora dos defuntos, e já Mentuhotep II no Império Médio havia aqui erigido um templo funerário), mas com a implantação deste templo ficou definitivamente conhecido como o mais sagrado dos templos sagrados. Tem um desenho diferente dos demais, sobretudo por se adaptar de forma magistral ao terreno.

Foi Senenmut, o arquitecto favorito de Hatchepsut, quem dirigiu a construção do templo, conectado com o Vale dos Reis e orientado de forma a acompanhar o trajecto do sol desde onde nasce, a este, até onde se põe, a oeste. E a sua disposição teve ainda em conta o alinhamento com o Templo de Karnak, dedicado ao deus Amon, na outra margem do Nilo – panorama que se avista do cimo deste templo de Hatchepsut.

Hatchepsut, filha de Tutmosis I, foi uma das poucas mulheres faraó do Antigo Egipto. Teve de se vestir de faraó, incluindo a barba postiça entrançada (símbolo do seu poder e filiação divina), para que a levassem a sério, mesmo se foi uma governante extremamente competente e justa. E foi um dos primeiros reis a levantar um templo funerário comemorativo, onde se rendia culto aos faraós depois de mortos. Mas depois da sua morte, Hatchepsut acabou num esquecimento deliberado pelo seu sucessor, Tutmosis III, seu sobrinho e filho de seu marido, com quem partilhou o poder durante 20 anos. Tutmosis III derrubou e apagou as estátuas, monumentos e representações da rainha como faraó, como podemos ver nesta imagem (onde surge representado o nascimento divino de Hatchepsut como filha de Tutmosis I e do Deus Amon Ra, como que justificando a sua origem divina para governar o Egipto).

Na época, os muros e pátios estariam cheios de cor, com jardins, tanques, esculturas e relevos, mas hoje estão quase despidos. Restam alguns relevos e as capelas dedicadas a Hathor e a Anubis.
Muito mais haveria para visitar ao redor do Vale dos Reis e é nestes momentos que lamentamos a falta de tempo que nos obriga a escolhas difíceis. Há, pois, que fazer o trabalho de casa, ler antes de viajar e/ou aconselhar-se com quem vai mais adiantado, de forma a visitarmos os sítios que mais nos possam interessar. Na certeza, porém, de que qualquer dos lugares da margem ocidental de Luxor será sempre fabuloso e enriquecedor.