Deixámos a Geórgia rumo ao Azerbaijão pela fronteira Lagodekhi. À saída, um desejo num placar: “boa sorte”. Ou seria um aviso? À entrada, a polícia de fronteira do Azerbaijão faz uma série de perguntas, quase todas elas relacionadas com a Arménia. Estiveram na Arménia? Quantos dias? Por onde andaram? Estiveram no Nagorno? De certeza que não? O que trazem na bagagem vindo da Arménia? Vêm de Portugal, terra do Luís Figo e do Cristiano Ronaldo?
Feita esta breve apreciação dá para ver que os inimigos jurados possuem algo em comum. Tanto para o Azerbaijão como para a Arménia, Portugal é sinónimo destes dois futebolistas. E duas semanas pelo Cáucaso deu para perceber que muito mais liga estas duas nações. Imagino os azeris e os arménios lado a lado na toalha esticada sob o sol de Batumi, no Mar Negro da Geórgia, o grande resort de praia do Cáucaso, o preferido de 10 em 10 dos habitantes da região.
Azerbaijão é, literalmente, a “terra do fogo”. A entrada vindos da Geórgia mostra, no entanto, mais uma terra de rios sem água. Pelas estradas de asfalto com um alcatrão novo que evita os solavancos, vamos vendo desfilar até Sheki um sem número de pontes sobre largos rios cheios de pedras onde só corre um fio de água. Duas constantes em relação à Geórgia se mantêm, as vacas na estrada e as montanhas do Cáucaso.
O Azerbaijão é mais um dos países tornados independentes após o colapso da União Soviética em 1991. Historicamente era lugar de pequenos khanatos na época do Império Persa e apenas se tornou um país unificado como Azerbaijão no século XX.
Ao contrário dos seus vizinhos do Cáucaso, Arménia e Geórgia (e Rússia), é um país muçulmano. Logo numa das cidades de fronteira vimos uma mulher totalmente coberta. Perguntámos ao nosso motorista se podíamos andar com as pernas ao léu, ao que ele respondeu imediata e convictamente que sim, acrescentando após uns breves segundos, talvez com contida indignação, que o Azerbaijão era um país moderno. Acreditámos. Com três mulheres no seu carro não parou de falar no quanto gostava de beber – vinho, vodka, cerveja, tudo -enquanto afagava a barriga a caminho de se tornar proeminente para um trintão e nos convidava para irmos não sei onde no dia seguinte.
Apesar de 97% dos azeris se considerarem muçulmanos, esse sentimento tem mais a ver com a pertença a uma cultura do que a vivência de uma fé religiosa.
Escolhemos Sheki para uma paragem de descanso entre a longa viagem de Tbilisi e Baku.
Sheki é uma cidade pacata envolvida pelas montanhas do Grande Cáucaso. Quase como que um oásis na paisagem maioritariamente desértica do Azerbaijão. Ao longo dos séculos sofreu por mais de uma vez a devastação em razão de inundações. No século XVIII houve nova tentativa de ser erguer a cidade e um khanato independente reinou por aqui até ser integrado no Império Russo em 1805. A antiga Nukha era então um importante centro de tecelagem da seda e encontrava-se nas rotas comerciais percorridas pelas caravanas a caminho de Baku e outras cidades. Não é rigoroso afirmar-se que Sheki era uma das cidades da Rota da Seda; era, sim, uma das muitas cidades em que a tradicional Rota da Seda se desdobrava.
Testemunho desse tempo é o histórico caravançarai de Sheki. Ainda hoje é fácil imaginarmos as caravanas com os comerciantes e os seus camelos a entrarem pela estalagem adentro para um necessário descanso entre cidades. Este caravançarai possui um ambiente fantástico.
À entrada, a única desde grande espaço, num hall escuro e empedrado uma fonte recebe-nos. Segue-se um largo e acolhedor pátio ao redor do qual se distribuem os quartos por dois andares em arcadas. É possível passar-se aqui a noite. Tentámos reservar – exclusivamente por telefone -, não conseguimos, mas não pudemos perder a visita a este belíssimo caravançarai. Não lhe falta sequer um restaurante num grande jardim e uma vista para as montanhas.
Mas a maior beleza de Sheki é o Xan Sarayi, o Palácio de Verão do khan. Só por ele vale a pena o desvio e a paragem em Sheki. Construído em 1762, a fachada está repleta de janelas em madeira e decorações geométricas em estuque.
Mas é o seu interior que surpreende. Não esperamos no que as ditas janelas se transformam no interior: uns vitrais coloridos absolutamente deslumbrantes, uma arte típica de Sheki. Mais encantador ainda, as salas deste palácio estão inteiramente decoradas com uma delicada pintura mural com motivos florais, mas também motivos alusivos a batalhas. É uma obra de arte superior que revela o bom gosto da cultura persa.
Infelizmente não é permitido tirar fotografias no interior do Palácio de Verão do Kahn. No entanto, desde há poucos anos podemos vingar-nos a tirar fotografias sem parar no Palácio de Inverno do Khan, não muito longe do outro.
Mais pequeno, têm vindo a decorrer obras de restauro e em duas salas podemos continuar a apreciar esta arte pura. Os motivos florais continuam a aparecer, juntamente com cenas clássicas de Nizami, o poeta épico da cultura persa. Um deleite.
Sheki possui ainda uma arquitectura singular nas fachadas em pedra e com decorações em tijolo dos seus edifícios.
Longe da grande capital, Baku, consegue ter uma cultura própria que se revela não só na arte expressa nos vitrais e pinturas murais como também ao nível da comida. O halva, um doce guloso parecido com o baklava, mas bem mais banhado com uma calda gulosa, está em toda a parte.
E a piada de Sheki é também, precisamente, a sua localização geográfica fazer dela um lugar perdido não só no espaço como quase que no tempo. Terra com um ritmo lento, gente simpática que se tenta fazer entender a quem não fala o idioma local, Ladas a quase monopolizarem o parque automóvel, cafés com bules e chávenas que parecem do tempo da avó. Mas não, não da nossa avó, que a nossa não andou por ambientes do Oriente Médio.