Briant Barrett – Relato da Minha Viagem aos Açores 1812-14

“As montanhas circundantes estavam arborizadas, até aos cumes. Tudo era silêncio, só se ouviam as canções dos pássaros ao entardecer, o vento a soprar com uma ligeira brisa através das árvores e o murmúrio das águas dos riachos que corriam, deitando pequenas gotas no imenso Atlântico.”

Não se sabe ao certo quem foi este Brian Barrett que andou pelo arquipélago dos Açores no princípio do século XIX. Mas sabe-se que deixou um manuscrito sobre o relato dessa viagem, manuscrito esse que esteve na posse de um coleccionador alemão proprietário de uma loja de antiguidades de Ponta Delgada antes de ser depositado na Biblioteca Pública da cidade. No ano de 2017 acabou por ser publicado em livro pela editora Letras Lavadas.

Brian Barrett seria um oficial britânico que terá procurado as ilhas para convalescer de alguma doença, o que não era raro na época. No manuscrito agora transformado em livro dá-nos uma impressão histórica, cénica, política e económica do arquipélago. Começa com uma elegia ao génio do Infante D. Henrique, O Navegador, pelo planeamento e invenção de meios para concluir a empreitada da descoberta de novas terras e pelo seu “temperamento forte e activo” o terem convencido de que as primeiras ilhas descobertas – Porto Santo e companhia, em 1419 – “não eram as únicas no vasto Oceano Ocidental e que a Atlântida de Platão poderia não ser considerada, apenas, fábula ou que o Oriente pudesse, talvez, ser alcançado por uma rota contrária”.

Ao escrever sobre a descoberta dos Açores – Formigas em 1431 e Santa Maria no ano seguinte, tendo um escravo negro avistado daqui São Miguel uns anos depois -, percebe-se que Barrett havia lido Gaspar Frutuoso, o pioneiro da historiografia dos Açores e ele próprio autor da obra a que dedicámos o post anterior, “Saudades da Terra”.

Barrett escreve sobre episódios curiosos, como aquele em que a natureza teria lançado a montanha para o mar e que os mouros que por ali andavam imploraram para ser retirados daquela boca do inferno. Refere os ataques espanhóis, “invejosos que eram pelas descobertas navais de Portugal”, bem como ingleses e franceses (não esquecer que à data em que Barrett passou pelo arquipélago vivia-se as Guerras Napoleónicas). Percorrendo a história, lembra que por morte de D. Sebastião a sucessão espanhola por parte dos Filipes não foi bem recebida nas ilhas, com lutas em especial na ilha Terceira. Escreve sobre ataques e saques e sobre o cerco de Angra após a proclamação de D. João IV como rei de Portugal em 1640. Também dos ataques dos mouros. No século XIX, aquele em que visitou as ilhas, finalmente a acalmia.

Das 9 ilhas do arquipélago apenas não passou pelas Flores e Corvo, por dificuldades e insegurança no transporte. Adverte que, “para se entender a narrativa descrita por um viajante, que tenha passado por estas ilhas, é extremamente útil ter-se alguns conhecimentos da própria língua portuguesa. Os nomes de quase todos os lugares, destas ilhas, derivam das suas características físicas ou de algum aspecto acidental que sensibilizou, fortemente, os seus primeiros povoadores”.

A ilha Terceira foi a que mais o seduziu, “metade composta por montanhas e a outra parte por boas planícies”, acreditaria que “não existisse uma ilha mais bela do que esta”. Apesar da Terceira ser para o autor “a rainha de todas as ilhas”, o Faial “tem mais beleza do que qualquer das outras ilhas dos Açores”. Parece confuso ou contraditório? Não faz mal, duzentos anos depois também ainda poucos de nós conseguimos produzir uma afirmação definitiva sobre qual a ilha mais bela. O que todos acabamos por concordar é que, sim, a “passagem do canal oferece paisagem mais encantadora que se possa imaginar”. As gentes do Faial eram para ele as mais sociáveis e o Pico “o pomar do Faial”, a ilha depois da Terceira com a melhor fruta. Ocupada pelos do Faial no Verão por o tempo ser aqui mais fresco e para prepararem as vindimas, no Pico Barrett aproveitou para subir à montanha mais alta de Portugal. E a descrição da jornada, curiosamente, possui semelhanças com a que Raul Brandão haveria de fazer à volta de um século depois, com pernoita numa gruta a que chamam Cabeço das Cabras. No Pico gaba ainda, para além da fruta, o gado de “superior qualidade” em relação às outras ilhas, assim como as pastagens. E o vinho, seu principal produto. Foi ver os vinhedos “só por curiosidade porque eu não conheço vista mais triste do que estes vinhedos”, “lava negra como carvão”. Mas, conclui, “com excepção da magnífica montanha, a ilha do Pico tem pouca atração turística.”

Sobre a caldeira do Faial escreve que “no fundo formou-se uma planície, parecendo um mundo em miniatura que é frequentado por lenhadores, pastores e o seu gado. Existe, também, ali, uma lagoa com vários acres, com uma grande planície revestida de camomila silvestre, pastagens, colinas, bosques e vulcões”.

De São Jorge e suas fajãs, “uma pessoa que não viva nestas ilhas acharia impossível que alguém pudesse chegar aos terrenos cultivados de inhames. Qual não seria o seu espanto ao vê-los trepar imensos precipícios perpendiculares, com grandes cestos cheios de inhames à cabeça! Se lhes faltar o pé ou a mão, por qualquer motivo, não tinham salvação possível. É impressionante vê-los trepar e chegar a lugares impossíveis de alcançar que nem mesmo um gato se seguraria com as suas garras. Porém, a necessidade, a coragem e a força de vontade é tanta que, onde quer que haja uma fenda para introduzirem um dedo do pé e um dedo da mão mais acima, não há obstáculo”.

Foi, no entanto, na ilha de São Miguel que passou a maior parte do seu tempo no arquipélago. Encantou-se pelo panorama do vale-cratera das Sete Cidades, “sítio mais romântico e isolado que eu jamais vi”, e pelo “belo e majestoso” Vale das Furnas. Na volta à ilha encontrou matas, laranjais, vinhedos, montanhas, colinas cónicas, crateras cobertas ora de verdura ora de terrenos cultivados, formosas baias, vistas encantadoras e amplas, singulares crateras vulcânicas, ravinas, enfim, tudo aquilo que ainda hoje nos deixa completamente extasiados e a bendizer a natureza deste recanto do nosso país. Mas, ao contrário de nós que vivemos agora, o principal meio de transporte de outrora era o burro (se bem que então como hoje a melhor forma de se conhecer as ilhas continue a ser “a la pata”).

De Ponta Delgada, uma desilusão (para ele e para mim enquanto o lia): “aquilo que achei mais desagradável à vista, no aspecto de Ponta Delgada, foi a cor negra da pedra lavrada que formava os cantos e alicerces das casas, os lintéis e os batentes das portas e janelas que contrastava com a cal branca que cobria as paredes, dando-lhe uma aparência muito pesada” – pelo contrário, acho belo este contraste. Da Igreja Matriz vem um elogio às suas portadas, mas a opinião de que os bustos estavam pobremente retratados e o interior pintado e dourado com pouco gosto.

Ainda de Ponta Delgada, descreve o ambiente das ruas, lojas que a compunham e indivíduos que a ocupavam “a praça é estreita e está cheia de barqueiros, pescadores, burros e burriqueiros; uma multidão colorida nas suas carapuças, chapéus cobrindo os rostos e ombros, fazendo-os parecer, à distância, gado com chifres. Não calçam sapatos nem meias, mas alguns por vezes usam um par de botas velhas. Outros só usam uma bota por não terem conseguido pedir ou roubar o par.”.

Este texto do inglês Brian Barrett é também muito interessante pela apreciação crítica que faz do povo açoriano, seus modos e maneiras, e do governo português. Enquanto lemos as descrições, a que não custa acreditar e aderir, não podemos esquecer que o viajante tornado escritor era inglês e que hoje, dois séculos depois, todos nós, povo português, muito evoluímos. Escreve sobre a falta de botas ou meias, barbas por fazer, cuspideiras para o chão, colarinho da camisa desabotoado, saguão das casas cheio de gente do campo acompanhada de seus burros, maus cheiros. “As cavalariças ficam situadas por debaixo da sala de estar e servem de aquecimento, no Inverno. Nunca pude encontrar outra explicação, nem mesmo ver a necessidade delas, no Verão. O seu forte cheiro é, na verdade, nauseabundo. Todos estes factores fazem com que a visita ao morgado não seja muito prolongada”. E é muito crítico da situação das mulheres na sociedade açoriana de então: “Se se for apresentado às damas da família, o que é muito raro, por serem rigorosamente vigiadas com todo o ciúme de um mouro, encontrá-las-emos sentadas no chão, em cima de uma esteira”. “Usam um xaile sujo sobre os ombros para ocultar o pescoço e o seio” e “ toda esta cena imunda, mais parece a tenda de um árabe do que um ambiente digno das filhas de Portugal”. Mais crítico ainda, tece considerandos sobre a liberdade muito condicionada das moças das famílias – irmãs ou filhas dos morgados -, que só saíam para ir à igreja, mas até capelas privativas havia nos próprios morgados. Pior ainda, o destino das filhas era o de serem enviadas para os conventos de forma forçada, “uma crueldade”, ou casadas com um homem que nunca conheceram, e às esposas designa-as como “escravas da família”.

Porém, não culpa os morgados por esta situação, antes o governo de Portugal, a “mãe-pátria”, como lhe chama, pela falta de um plano de educação e por os ter votado ao esquecimento, fazendo com que permanecessem com os mesmos costumes e modo de viver, vivendo fechados sobre si próprios. Mais especificamente, “os filhos dos morgados, como não vão estudar para o continente, adquirem uma cultura muito reduzida, nos Açores. Em São Miguel, a instrução não é moda e muitos morgados não sabem escrever. São criados juntamente com os serviçais da família, até mesmo, nas suas próprias diversões. É chocante a forma como os mancebos ocupam o seu tempo, reunidos nos cantos das ruas. São habituados na ociosidade e, também, inadaptados ao serviço militar. Mesmo o pouco trabalho da condição eclesiástica envolveria demasiado trabalho e sacrifício. Não fazem grandes esforços e tornam-se uns ignorantes orgulhosos, sem terem um objectivo na vida.”.

A ignorância das classes era para Barrett a verdadeira causa da sua degradação moral e vícios. No entanto, faz questão de rematar o seu texto afirmando-se grato ao povo açoriano pela sua civilidade e gentileza.

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