Gaspar Frutuoso, “Saudades da Terra”

“Costumam dizer os ignorantes, ouvindo alguma coisa dos segredos de filosofia e efeitos da poderosa natureza, que lhe não cabe em seu entendimento: – ó grande mentira de filósofos; ao que eu não sei dar outra mais certa resposta, senão dizendo: – ó grande parvoíce de néscios, pois não alcançam que há muitas coisas sobre seu baixo entendimento que lhe ficam tão altas, que nem com altíssimas escadas, de ordenados e compassados degraus de razões e claras demonstrações, podem lá subir, para descobrir do alto, empinados, o que do chão, rasteiros, ver não alcançam. […] Digo isto para refrear as línguas de alguns que em algum tempo ouvirem algumas coisas que agora contar quero, que terão por impossíveis porque as não viram. Aos quais responderei que quem as viu era de tão boa consciência e tão verdadeiro como eles, e se não houvéssemos de crer senão o que se vê com os olhos, muito tempo há que fora já destruída a república humana.”

Gaspar Frutuoso (1522 – 1591), nascido em São Miguel, foi o pioneiro da historiografia açoreana. Fez-se padre, mas foi a sua faceta de historiador e a sua obra “Saudades da Terra” que nos faz hoje lembrá-lo.

Saudades da Terra é um texto dividido em 6 Livros que comporta uma descrição aprofundada da história e geografia dos arquipélagos da Macaronésia: Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde. O Atlântico que nos é mais próximo, pois. O livro I é dedicado à história geral e do Atlântico, com ênfase nos arquipélagos das Canárias e de Cabo Verde e nas ilhas de Castela; o II à Madeira; o III à ilha de Santa Maria; o IV a São Miguel; o V, conhecido como a «História de Dois Amigos da Ilha de São Miguel», é um texto ficcional; e o VI às ilhas dos grupos central e ocidental.

O Livro IV, dedicado a São Miguel, é o mais pormenorizado na caracterização da ilha e suas gentes. E sobre esta ilha neste “tão comprido e largo mar oceano”, tem Frutuoso uma descrição fantástica em todos os sentidos:

“A cabeça deste gigante, que da parte do oriente está encostada, é o morro do Nordeste, e Água Retorta uma orelha que tem para cima, porque, como está como encostado, a outra não aparece; da freguesia de São Pedro, da parte do norte, e do Faial, da do sul, começa o pescoço que se vai estendendo até à Povoação, ficando da outra banda encolhido. A comprida e reverenda barba é Achada Grande estendida até Achada Pequena, que é o cabo dela, que se tornou cã e calva pouco tempo há, quando no segundo terramoto se cobriu de pedra pomes e cinzeiro; os Fenais da Maia, da parte do septentrião, e a Ponta da Garça, da banda do sul, são seus ombros. A Maia e Vila-Franca, os cotovelos de seus braços, e neste esquerdo tem o ilhéu de Vila-Franca, como seu escudo, embaraçado; além dos cotovelos, Porto Formoso e o lugar de S. Lázaro são suas ulnas ou seus braços, cujo fim, encolhido para dentro, são os portos de Santa Iria e de Vale de Cabaços, onde saem para fora suas forçosas mãos, a ponta do pico de Santa Iria com sua Ribeira Grande, da banda do norte, e Água do Pau com sua ponta da Galé, da outra parte do sul. Logo está a delicada cintura cingida com um rico cinto, de Rabo de Peixe até à Alagoa, por onde a ilha é mais estreita. A faldra de sua malha é os Fanais e o lugar de Rosto de Cão, ambos termos da cidade, onde o cinto, com que se cinge, acaba de chegar, dando um nó cego da forca, como artificial, com uma figura de rosto de cão, no cabo assentado, com o focinho para o mar e o rabo para a terra, na ponta de guarnição com que filha, prende, açoita e castiga os malfeitores. Do lugar de Santo António à Bretanha, coxa do pé direito, da banda do norte, e da outra parte do sul, a cidade da Ponta Delgada, Relva e Feteiras, polpa grossa e forte coxa do seu esquerdo. A Ponta da Bretanha e o lugar de Candelária seus giolhos, e a grota de João Bom e o lugar de São Sebastião, suas pernas; o esquerdo, dizem os antigos que era um sítio que agora chamam as Sete-Cidades, que antigamente tinha muito alevantado no ar, mas com o grande peso, dando um grande coice, sacudindo-o, se sumira e estendera pelo mar, tomando posse dele, fazendo a fajã do lugar que se chama Mosteiros, aparecendo-lhe ainda agora as pontas dos dedos daquele pé, feitas ilhéus e penedos, sobre as águas do mar que ali está pisando; o direito é o Pico das Camarinhas, que também tinha mui alevantado e depois abaixou e estendendo-o pelo mar e mostrando-o armado com armas de fortes penedos é duro ferro que ali forjou Vulcano, pelo que o povo, de então para cá, chama àquele lugar Pico das Ferrarias; e no meio destes feros e horrendos pés se estende o comprido rabo da opa roçagante que tem vestida sobre as armas, abotoada em algumas partes, do pescoço até aos pés, com botões de altos e grandes montes. Mas por haver andado longos caminhos d’antes e dado muitos passeios, está o rabo desta vestidura tão safado que não tem lustros, nem verdura, sendo ela toda verde, pelo que esta parte desta opa, que é o cabo ocidental desta ilha, de todos é chamada comummente, por ser safada e calva, os Escalvados.”

O historiador fala das famílias que vieram povoar a ilha, da vegetação original, das colheitas e até preços que atingiram (como a valia do trigo entre 1513 a 1589), do gado e do pescado. “Havia nesta ilha, logo no princípio do seu descobrimento, tão grandes malvas como árvores, nas quais se dependuravam também os bois e vacas que tomavam, e dali repartiam a carne dela pela maneira sobredita, o que queriam e a quem a queria, e assim se proviam de carne sem haver mais açougue, senão o que cada um tinha à sua porta; de modo que não tinha preço a carne de toda a sorte, e de graça a comiam, e pouco era isto, se aproveitaram o que sobejava, mas deixavam apodrecer e perder muita por razão da grande multidão do gado, cuidando que nunca faltaria, e também por haver pouco sal na terra.” “Depois, era o pescado tanto e tão barato, que ninguém o queria comer salgado, do qual mandavam deitar fora as gamelas cheias, quando vinha outro fresco”.

Dá conta da infinidade de aves e da abundância de tudo, até de vinho de fora e da terra. Tão fértil era a ilha que lhe parecia uma mina de ouro. Relata ainda da força, valentia, esforço, manhas e destrezas de algumas pessoas da ilha “porque de todas não pude saber”.

Conta da destruição de Vila Franca do Campo, então a mais populosa, pelo tremor de terra em 1522 (também conhecido por “subversão”), um castigo divino de que houve avisos mas, ainda assim, “em uma só triste noite foram acabadas muitas vidas e ficou tudo tão coberto, que nem nobres casas, nem altos edifícios, nem sumptuosos templos, nem nobres e vulgares pessoas pela manhã apareceram, ficando tudo tão raso e chão, sem sinal nem mostra onde vila estivesse, porque com o tremor caíram os mais dos edifícios primeiro e a casaria, que acolheu a mais da gente debaixo, depois, sobrevindo a terra correndo, arrasou tudo, como raio ligeiro que desbarata quando acha mais forte e duro”.

Não refere apenas este tremor, mas também outros terramotos acontecidos na ilha, falando da origem dos biscoitos, a terra tornada preta e com jeitos pela lava.

Dá, igualmente, conta da explicação de nomes de terras curiosos, como o de Fenais por ali haver muito feno ou como a descida Pé de Porco, junto à lagoa das Furnas, por aí, no início do descobrimento da ilha, terem os homens comido um pé de porco cozido. Ou como o de Rabo de Peixe, “chamado assim por estar situado em uma ponta de terra e penedia, que sai ao mar, parecendo rabo de peixe; ou, como outros, porque se achou ali no princípio, junto ao mar, um peixe muito grande, sem se poder saber que peixe fosse, se era baleia ou de outro nome, e pelos mouros, que naquele tempo ali guardavam gado, foi dependurado o rabo dele em um pau e dali a dias perguntando a um de donde vinha, respondeu que do rabo de peixe”.

E relata pormenores dos amores privados, como o daquele que “se afeiçoou nela um homem com uma mulher casada que lhe matou o marido, pelo que se pôs a monte com a mulher”.

Fala das cracas que ainda hoje existem para os lados de Mosteiros, a fajã que “é uma terra corrida do Pico das Sete Cidades que antigamente rebentou, descendo pela Rocha, fez abaixo dela (tomando posse do mar) esta grande fajã de até dez moios de terra boa, que dá o melhor trigo da ilha, e faz pão sem tufo, como o de Portugal, e bom pastel e melões”.

Nesta obra encontram-se descrições das Furnas, Ribeira Grande, Rabo de Peixe, Ponta Delgada de outrora, bem como da curiosa constituição da paisagem que hoje admiramos na Lagoa Sete Cidades, que não era a mesma que encontraram os primeiros descobridores da ilha.

A própria vegetação da ilha não era a mesma que hoje presenciamos aquando do momento da chegada dos primeiros descobridores, claro.

O primeiro desembarque foi no lugar de Povoação Velha, “antre duas frescas ribeiras de claras, doces e frias águas, antre rochas e terras altas, todas cobertas de alto e espesso arvoredo de cedros, louros, ginjas e faias, e outras diversas árvores”. Andavam mais pelo mar no barco de seu navio e “pouco pela terra, porque muito não podiam, por lho impedir o espesso mato. Uma solitária ilha acompanhada de uns altos montes e baixo os vales, povoados de arvoredo, com cuja verdura vestida estava toda a terra, dando grandes esperanças de ser mui fértil e proveitosa a seus moradores, que nela viessem a fazer sua colónias”.

Um engano, porém: “vendo muitos açores e bons, lhe puseram o nome ilhas dos Açores, mas outros têm por mais verdade que fossem milhafres que são parecidos”.

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