Levada do Alecrim e Vereda da Lagoa do Vento

O Rabaçal é uma espécie de parque de diversões para os amantes de caminhadas. Daqui saem inúmeros passeios, entre eles o da Levada das 25 Fontes, o mais popular da ilha. Situado no concelho da Calheta, pouco depois do Paul da Serra, já havíamos apreciado o vale do Rabaçal deste o alto nos primeiros quilómetros da Vereda do Fanal. Se optássemos pela Levada das 25 Fontes (percorremo-la em tempos) caminharíamos pelo vale, mas optámos pela Levada do Alecrim, pelo que o voltámos a “sobrevoar”, mas desta vez por uma outra vertente.

O parque de estacionamento do Rabaçal enche com facilidade e ao dizer isto já dá para perceber como o sítio é concorrido. Estacionado o carro, logo víramos à direita (ao contrário do que fará quem segue para as 25 Fontes, que irá descer a estrada), não sem antes ver finalmente uma das vacas que o sinal de trânsito do Paul da Serra anunciava – só faltou a tartaruga ao seu lombo.

A Levada do Alecrim (PR 6.2) tem início aqui, a quase 1300 metros de altitude. E porquê fazer mais uma levada e logo esta? Desde logo porque “fazer mais uma levada” não é uma repetição, é sempre um belo momento de imersão na natureza. E depois porque a Levada do Alecrim é uma das mais fáceis, sempre plana, tem vistas esplêndidas para o vale do Rabaçal, é tranquila e bonita, tem um troço por um dos canais de água mais raros (já lá iremos) e termina numas piscinas naturais com cascata lindíssimas (a Lagoa Dona Beija). A este percurso de apenas 3,5 quilómetros x 2 (ida e volta) resolvemos acrescentar mais uns lagos e a Lagoa do Vento, num total de 11 quase sempre fáceis quilómetros.

O início do percurso é logo bem bonito, sempre com vegetação a ladear-nos, enquanto a levada corre serena ao nosso lado direito. Esta vegetação vai variando, umas vezes mais baixa, outras mais alta e outras ainda envolvendo-nos por completo. Predomina o urzal, mas existem também outras espécies endémicas. O mais interessante é que quando descermos para a Lagoa do Vento iremos perceber uma vegetação ainda mais diversa, uma vez que esta é uma zona de transição entre o planalto em altitude e a Laurissilva em quotas mais baixas.

A presença da levada é uma constante até ao final do percurso, na sua nascente na Ribeira do Lajeado. A construção desta Levada do Alecrim teve como finalidade a captação e o transporte da água das ribeiras do Lajeado e do Alecrim, abastecendo depois a Central Hidroeléctrica da Calheta (pela qual haveremos de passar na volta deste percurso). Este é um lugar de abundância de água, já se vê. É aqui que entram em acção as levadas, desviando a água do curso das ribeiras de forma a levá-la para os lugares onde ela é necessária, alargando as áreas de regadio. Por trás da sua construção, que começou logo no século XV com o povoamento da ilha, esteve muitas das vezes um trabalho quase sobre-humano, daí a fama dos madeirenses como exímios construtores. De tal forma que Afonso de Albuquerque, no seu plano para a conquista do Egipto, terá enviado uma carta ao rei D. Manuel a solicitar os madeirenses que construíram as levadas, de forma a desviar o curso do Nilo e deixar o Cairo sem água.

Acerca da paisagem da ilha, Vitorino Nemésio falava na impressão de “sangue fácil no corpo da ilha verdejante, quando custou o suor e a previdência de muitas gerações”. São milhares as levadas da Madeira, a esmagadora maioria delas de iniciativa privada. Construídas primeiro pelos homens ricos e, depois, por associações de heréus, agricultores que possuíam uma parte da água numa levada e que dividiam entre si os custos de manutenção e a administração da levada. Para se ter uma ideia, no século XIX eram apenas 5 em 400 as levadas do Estado. Foi entre 1835-60 que aconteceu a construção da primeira levada com dinheiro do estado, precisamente nesta zona, a levada velha do Rabaçal.

Prosseguindo pela levada do Alecrim, a caminhada continua simpática e abrigada. Uma nesga na vegetação deixa-nos face a umas janelas naturais para o imponente vale do Rabaçal. Até que chegamos a um dos pontos altos do percurso, uma incrível excepção ao declive suave das levadas. Quase a lembrar os tobogãs dos parques aquáticos, a levada surge num plano muito inclinado, acompanhada por um lanço de uma trintena de degraus, numa descida vertiginosa. O efeito da água é fantástico e causador de um surpreendente desassossego na paisagem. No entanto, rapidamente voltamos a caminhar na companhia do movimento lento da água. Os passarinhos, quase sempre tentilhões, voltam a ouvir-se cantar juntamente com a passagem fluida da água e a “água vadia vem cantando por entre rochas cobertas de musgo, por entre rendados fetos, por entre árvores”, como descreveu Ferreira de Castro.

À placa que indica a Lagoa do Vento desviámos no caminho da Levada do Alecrim (hoje sabemos que teria sido mais sensato continuar o percurso e desviar na volta, seguindo pela Vereda da Lagoa do Vento em direcção à Casa de Abrigo do Rabaçal e evitando a subida inclinada, único momento difícil da jornada, por cansativo). Descemos a bom descer cerca de 900 metros, sem que nos seja exigida qualquer técnica a não ser a de um eventual saltitar pela água e pedrinhas de um riacho. A vegetação é aqui mais cerrada, por estar na tal zona de transição da altitude da urze para a floresta Laurissilva.

A Lagoa do Vento é mais uma das brutais cascatas da Madeira. Primeiro vê-mo-la por entre o arvoredo e, depois, mesmo junto à pequena piscina natural para onde se despenha. A curiosidade topográfica desta Lagoa é que é ela que alimenta a Lagoa do Risco, mais abaixo, outro dos pontos altos desta região do Rabaçal. E a água de ambas as lagoas provém da Ribeira do Lajeado, para cuja nascente nos encaminharemos em seguida, depois da algo extenuante subida de volta ao trilho da Levada do Alecrim.

A Lagoa da Dona Beija é um recanto a pouca distância. A nascente da Ribeira do Lajeado tem uma piscina natural com uma água de cor apelativa, mas o tempo não convidava a um mergulho. Mais adiante surge outra lagoa e depois mais outra, ambas muito encaixadas na paisagem. Da Dona Beija optámos por não voltar logo no caminho oficial da Levada do Alecrim, antes seguindo em direcção a outras lagoas, dando por bem empregue a decisão.

Seguindo a intuição e confiando no sentido da orientação, uma vez que o trilho deixa de estar marcado e os arbustos não estão muito pisados, lá fomos subindo para até encontrar forma de passar para a outra margem da ribeira e retornar. Creio que não alcançámos todos os “lagos da Madeira”, mas os que vimos, ainda para mais desertos, deixaram-nos com a certeza de que este é um lugar para se voltar em busca de mergulhos idílicos no meio da penetrante vegetação.

Na volta seguimos pela Levada do Pico da Urze, levada antiquíssima, das primeiras do sul da ilha, entretanto reconstruída em betão e direccionada para a Barragem do Pico da Urze (parte integrante da Central Hidroeléctrica da Calheta), que abastece as vizinhas Calheta, Ponta do Sol e Ponta do Pargo. Pode ter um ar mais bruto e não tão delicado, mas a paisagem por onde seguimos continua fantástica, uma daquelas altaneiras a dominar todo o vale do Rabaçal e vale da Ribeira da Janela. E em poucas centenas de metros juntamo-nos novamente à Levada do Alecrim, para a percorrer com gosto uma vez mais no caminho de volta.

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