Olhos de Água do Alviela

O Alviela é um rio que nasce em Alcanena, a mais de uma centena de quilómetros de Lisboa, mas que acabou por desempenhar um papel preponderante no abastecimento de água da capital. Porém, o que nos moveu a visitar a sua nascente não foi a obra de engenharia que possibilita que a água deste afluente do Tejo chegue até à cidade onde está a sua foz, antes o fenómeno natural que aqui se observa.

Em pleno Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros, da junção com a Ribeira dos Amiais surge o Alviela, no sítio mais conhecido como Olhos de Água. Por uns metros a Ribeira corre serena, abrigada pelas margens carregadas de densa vegetação, mas logo depois irá correr totalmente escondida num percurso subterrâneo que a leva a furar por grutas e algares. Esta é uma zona cársica e a nascente do Alviela a mais importante do género no nosso país.

A breve caminhada (1,5 km) que nos leva até terras da nascente tem início na bonita praia fluvial dos Olhos de Água. Aqui vemos a estrutura da Epal, sucessora da Companhia das Águas que nos anos 70 do século XIX escolheu este lugar para captar e levar a água fresca e leve do Alviela para Lisboa – desde 1880 até à construção da Barragem de Castelo de Bode, nos anos 50 do século XX, a Nascente do Alviela foi a principal fonte de abastecimento de Lisboa. A obra engenhosa implicou a construção de um canal / aqueduto por cerca de 120 quilómetros, incluindo a monumental arcaria do aqueduto na Louriciera, o Sifão do Alviela sob o rio Trancão, em Sacavém, e a hoje musealizada Estação Elevatória dos Barbadinhos, o reservatório de água final, já em Lisboa, na Rua do… Alviela.

O caudal do Alviela era então muito grande e, não obstante o desvio, o rio continua com um caudal generoso. Em pico de cheia chega a debitar 17 mil litros por segundo, qualquer coisa como 1,5 milhões de metros cúbicos de água por dia. Claro que não pode faltar um lenda ao lugar. A Lenda da Moura do Alviela conta-nos que a filha princesa de um rei mouro apaixonou-se por um rapaz pobre, amor não permitido pelo seu pai. A linda princesa refugiou-se, então, nas grutas do rio Alviela e acabou amaldiçoada pelo seu pai por se recusar a aceitar os pretendentes por si escolhidos. Chorava tanto que as suas lágrimas grossas tornaram os seus olhos enormes e a água por eles vertidos foi tamanha que acabou a alimentar as terras do Alviela, seus animais e suas pessoas.

A praia fluvial tem todas as infra-estruturas para se poder lá passar grandes momentos de lazer, como parque infantil, zona de merendas, zona de banhos e até um parque de campismo. Mas fora da época balnear a ausência de um mergulho é compensada pela tranquilidade absoluta e uma paisagem imaculada. Aqui fica ainda o Centro de Ciência Viva do Alviela – Carsoscópio, onde se pode empreender uma visita virtual pela história do Maciço Calcário Estremenho, incluindo o fenómeno geológico da nascente do Alviela, para além do restante cenário natural, sua fauna e flora.

É, pois, a característica cársica do lugar a sua grande atracção, por dar origem a uma série de formações curiosas e fabulosas. Iniciamos uma pequena subida e por entre a vegetação vamos ouvindo a água do rio a cair até se transformar na praia fluvial que deixámos para trás e agora vemos abaixo de nós. Nesta fase não vemos o rio e vamo-nos distraindo com o belo bosque e com uns cogumelos deliciosos ao olhar.

E eis que surge um desvio para o Canhão Fluviocársico da Ribeira dos Amiais, também conhecido como a Ressurgência da Ribeira dos Amiais. Desviámos. De volta ao trilho, pouco depois surge um anfiteatro para espreitar a Gruta da Canada, conhecido como Algar da Janela Cársica. Espreitámos. Uns metros mais e chegamos ao final do percurso, no lugar do Sumidouro da Ribeira dos Amiais. Parámos e enfim compreendemos.

Só aqui começámos a perceber com exactidão o que é isso do relevo cársico e por que é o Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros a maior região cársica de Portugal. As rochas calcárias são moldadas pela erosão derivada das águas da chuva, formando camadas espessas. Em alguns casos essa acção resulta em manifestações superficiais como as lápias (rochas fendidas – quase omnipresentes no Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros) ou as dolinas (depressões naturais no solo que formam vales – como são exemplo as lagoas do Arrimal, também neste Parque). Mas aqui, nos Olhos de Água, essa manifestação é subterrânea, através de uma complexa rede de galerias subterrâneas constituída por grutas e algares.

O lugar Sumidouro da Ribeira dos Amiais significa que o primeiro afluente do rio Alviela se some aqui, deixando-se perder numa galeria rochosa, a gruta da Lapa da Canada, por ela correndo de forma subterrânea por 200 metros. Este é um paraíso para os espeleologistas, uma vez que este caminho da Ribeira dos Amiais vai provocando, por dissolução, várias cavidades na rocha calcária, dando origem a uma série de formas e estruturas a descobrir. Não sendo espeleologistas, não é aconselhado aventurar-se pelo interior da gruta.

Voltamos a sentir a ribeira no Algar de abatimento da janela cársica. Um algar é uma abertura vertical natural na rocha e este proporciona uma outra entrada na gruta da Lapa da Canada, a qual possui várias galerias e o leito subterrâneo da ribeira dos Amiais lá bem no fundo, para além de ser lugar de maternidade de morcegos, elemento essencial no equilíbrio deste ecossistema. Por isso e pelo perigo associado a este tipo de lugares não é aqui permitida a entrada. Fica a imagem das suas cavidades, como se de uma pintura de Oskar Kokoschka se tratasse.

E, depois, vemos finalmente a ribeira a aparecer na Ressurgência da Ribeira dos Amiais, à saída da gruta da Lapa da Canada e o lugar onde a ribeira retoma o seu percurso superficial depois dos tais 200 metros escondida. Aqui, a dissolução da rocha calcária ao longo de milhões de anos deu origem a um canhão fluviocársico. Este canhão não é mais do que uma garganta esculpida na rocha pelo rio, forçando a sua passagem e, de caminho, formando impressionantes paredes. A beleza deste fenómeno geológico é maior neste exacto lugar, onde em breve as águas da Ribeira dos Amiais desaguarão no Rio Alviela no que hoje é a praia fluvial. Os apenas veraneantes não suspeitam da maravilha que têm para lá do seu recreio.

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