Svaneti

Na estação de comboios de Tbilisi vários nos perguntaram se seguiríamos para Batumi. Batumi é um dos maiores resorts do Mar Negro, a concorrida riviera dos tempos soviéticos e ainda hoje o maior destino turístico da Geórgia. Mas não, não seguiríamos para a praia. Iríamos antes para as montanhas de Svaneti, a nossa Geórgia idealizada.

Para chegar a Mestia, a principal povoação de Svaneti, tivemos de viajar no comboio nocturno Tbilisi – Zugdidi e daí apanhar uma marshutka que em 4 longas horas nos deixou finalmente no destino. As deslocações por estes lados levam tempo, mesmo se as distâncias não são tão grandes assim.

A estrada que sai de Zugdidi rumo a norte faz-nos passar bem junto à Abecásia. O conflito entre esta província separatista e a Geórgia, decorrido em 1992-93, deixou marcas e uma delas foi o êxodo dos seus habitantes para Zugdidi. Mas no caminho não se veem homenagens aos mortos desta guerra, antes se veem memoriais levantados aos georgianos que caíram na II Grande Guerra Mundial 1941-45. O ambiente não é pesado, porém. À beira da estrada encontramos velhinhos à conversa sentados em cadeirinhas de madeira. E a paisagem vai-se apresentando. As montanhas vão crescendo, ao nosso lado repousa uma barragem de cor indefinida entre o azul e o verde que, mais adiante, dá lugar a um rio estreito que corre rebelde procurando furar as pedras que lhe aparecem no caminho. Pelo meio, muitas quedas de água.

Chegámos a Mestia sob uma chuva intensa, bom pretexto para ficarmos a descansar na nossa casa de hóspedes. O tempo nesta região é conhecido por ser temperamental, daí que o voo que liga Tbilisi a Mestia no verão descole e aterre quando calhe, não sendo pois muito fiável – daí a nossa opção pelo comboio + marshutka. Mas, felizmente, o tempo foi mudando a nosso favor e pudemos explorar a região como planeado.

Svaneti possui alguns dos maiores picos da Europa, como o Chkhara – terceiro maior da Europa e o maior da Geórgia, com 5201 metros – e o Ushba – 4690 metros. O Monte Elbrus, no Cáucaso da Rússia não muito longe daqui, é mesmo a maior montanha da Europa, com 5642 metros.

Poderia parafrasear John Muir, um dos pioneiros do movimento pela conservação da natureza: “As montanhas estão a chamar e eu tenho de ir”. Ou ser levada a experimentar a sentença do poeta William Blake: “Grandes coisas são feitas quando o Homem e as montanhas se encontram”. A relação entre as montanhas e a criatividade é conhecida, sendo elas uma inspiração para poetas, pintores, músicos, filósofos, enfim, todos os seres humanos. Mas, na verdade, era apenas a busca de um cenário superior que me movia, aquele que faz a Geórgia ser considerado um dos países mais bonitos do mundo.

Svaneti é o coração profundo da Geórgia e o guardião dos seus valores e tradições. Parte do Grande Cáucaso, situado no limite norte da fronteira com a Rússia, este é um lugar remoto, cheio de paisagens de tirar o fôlego, montanhas nevadas, vales verdejantes e aldeias pitorescas. Tão remoto que nunca chegou a ser conquistado por povos estrangeiros e os invasores nem ousavam chegar perto.

Já no século I a.C. Estrabão se referia aos soanes reconhecendo-os como os melhores em coragem e poder. Os soanes do historiador e geógrafo grego eram os svans, os habitantes de Svaneti, e estes possuem ainda hoje uma forte identidade cultural, bem como a sua própria linguagem e religião, um cristianismo que incorpora ritos pagãos.

E os svans possuem ainda algo que os distingue de todos os outros. Montanhas nevadas e vales verdejantes muitos os têm, basta a Natureza assim o decidir. Mas aldeias pitorescas graças à parceria entre a Natureza e o engenho arquitectónico só os svans as têm. A Svaneti superior, no vale do rio Enguri, por onde andámos, é conhecida pelas suas típicas torres medievais.

As koshi são torres defensivas de pedra e a sua antiguidade não está ainda datada com certeza. A maioria das que chegaram aos nossos tempos datarão do século XII – XIII, mas segundo a Unesco a sua origem remontará a tempos pré-históricos. Simples mas elegantes, normalmente são construídas em xisto e possuem 20 a 30 metros de altura correspondentes a 4 ou 5 andares. A entrada encontramo-la no segundo andar da torre, acessível por uma escada que é colocada ou retirada desde o seu interior, para impedir o acesso a indesejáveis. Testemunhos da dureza deste território montanhoso isolado, as torres de Svaneti serviam ao mesmo tempo de lar, celeiro e abrigo. Abrigo do mau tempo, dos invasores ou das disputas entre famílias locais. Como os svans estavam divididos em clãs sem uma organização comum superior, o que reflete bem o seu espírito de liberdade, cada um dependia de si. Assim, cada um deles tinha a sua própria casa fortificada, ao invés de uma fortificação mais alargada a um grupo de casas.

Estas torres defensivas abundam em Mestia e Ushguli, as duas povoações mais pitorescas, mas também pelo caminho entre elas. A região é óptima para se fazer diversas caminhadas e o trek de 4 dias entre Mestia e Ushguli está extremamente bem cotado. Sem férias infinitas, optámos por ligar as duas povoações de carro e fazer umas caminhadas junto a elas.

Começando por Mestia. Esta é, na verdade, um conjunto de uns 10 lugarejos. A praça central dispõe de transportes, serviços públicos, um jardim, mini-mercados e restaurantes. E uma bonita estátua da muito amada Rainha Tamar, aquela que governou a Geórgia durante a sua época dourada, entre os séculos XII e XIII.

Para além de caminhar pelo verde com vista para os rios Mulkhra e Mestiachala por entre as torres, cães e vacas – sim, descobrimos que não é só na Índia que as vacas têm o direito de harmoniosamente partilhar o espaço connosco – Mestia é ideal como ponto de partida para umas quantas caminhadas diárias.

Pode caminhar-se desde Mestia até ao Glaciar Chalaadi mas isso não tem grande piada porque a maior parte da estrada está ocupada com obras, buldozers e tubos para a construção de uma hidroeléctrica. O melhor é seguir de “táxi” até à ponte suspensa de madeira no vale do rio Mestiachala e dai atravessá-la e caminhar por cerca de 1,5 quilómetros até aos pés do glaciar.

A natureza envolve-nos por completo, densa vegetação, rio rebelde e ruidoso, montanhas de um lado, do outro, à frente, atrás. E o glaciar está lá em cima, mesmo defronte de nós. A última parte do percurso é feita a saltar de pedra em pedra, os despojos do glaciar. É perigoso acercarmo-nos totalmente do Chalaadi, pelo que é sensato respeitar o fim do percurso pedestre. Ouvem-se as pedras a soltar e elas lá veem rolando até cá abaixo. Fora do verão há perigo de avalanches. Mesmo não podendo pisar ou tocar no glaciar lá em cima podemos permanecer junto ao rio a observar algumas paredes glaciares na cova da montanha que o vem empurrando.

Mas a caminhada mais concorrida é aquela que nos leva até à Cruz acima de Mestia ou até aos Lagos Koruldi, jornada para durar um dia inteiro. Como só tínhamos pouco mais de meio dia disponível, optámos por tomar um jipe até ao topo e daí vir descendo. Dizer que poupamos o fôlego não é totalmente correcto. Primeiro porque a viagem dentro do jipe não nos livra de uns quantos calafrios causados pelas intrépidas manobras do condutor e pelas vertigens da beira da péssima estrada. Segundo porque as vistas, todas elas, são de cortar a respiração.

Os Koruldi são uma mão cheia de pequenos lagos aos pés do Monte Ushba. Há quem acampe aqui e não deve existir melhor forma de acordar do que esfregar os olhos e dar com aquele cenário imenso, mergulhar as mãos em concha nas águas de um dos lagos para lavar os olhos e ver o nosso rosto refletido no meio de um sem número de montanhas e, já bem acordado, confirmar que o panorama ao nosso redor é mesmo real.

Em nenhum outro lugar percebemos o que significa a expressão “cascatas de montanhas”. São uns picos atrás dos outros ou, como li algures numa deliciosa descrição, são como os meninos na fotografia da escola, dispostos ao calhas, altos e baixos, esguios ou gordinhos, e tal como as crianças algumas têm a cabeça nas nuvens. Ou então, pegando na analogia da escola, gosto de pensar que estes picos são como meninos bem comportados mas geniosos sentados na sala de aula a prepararem-se para actuar enquanto que, nós, privilegiados, somos a sua audiência.

Pena que o Ushba não se deixasse ver completamente descoberto, mas estamos tão alto que é impossível que as nuvens não bailem por ali. Ainda assim, descendo até à Cruz pudemos vislumbrar a sua silhueta e confirmar a singularidade da sua forma, dois picos gémeos relativamente arredondados.

Até Ushguli são 47 quilómetros percorridos em 3 horas (!?) de carro ou os tais 4 dias a pé. A estrada é péssima e não é qualquer veículo que a percorre, embora esteja em beneficiação, pelo que daqui a uns anos a viagem será mais cómoda. Não me parece, no entanto, que algum dia venha a ser um local facilmente acessível.

Ushguli poderia ser sinónimo da palavra remoto. É uma comunidade de cinco aldeias no vale do Enguri, considerado o mais alto ponto da Europa permanentemente habitado. Localizada a 2100 metros de altitude, é de um quase isolamento que se trata. Se dizem que viver numa ilha é atrofiante por não se poder fugir senão para o mar, que dizer de um lugar rodeado pelas mais altas montanhas da Europa? Eis o Cáucaso profundo em toda a sua magnificência.

O caminho até Ushguli transporta-nos por paisagens fantásticas, incluindo uma visão do Monte Chkhara, o mais alto da Geórgia. Paisagem de montanhas, o rio Enguri por vezes ali mesmo à beira e por outras apenas avistado depois de uma olhada por um desfiladeiro mais ou menos alto, água a escorrer das paredes xistosas e umas pequenas povoações, cada uma delas com as suas torres svans.

O primeiro lugarejo de Ushguli é Murqmeli. É o mais afastado do centro e tem um ar quase abandonado. As torres svans no vale rodeado de montanhas já criam por si só um enorme ambiente de mistério, mas os caminhos empedrados, as ruínas do casario e as apenas 4 famílias que restam a Murqmeli adensam o clima. Cães, cabras, porcos e vacas são quase tudo o que resta no seu dia a dia, depois da intempérie de 1987 que assolou esta povoação e matou dezenas.

Curiosamente, diz que pela região de Svaneti não faz tanto frio assim, apenas uns -10 ou -15 graus. Impossível não esboçar um sorriso de incredulidade perante esta sentença, mas depois acabamos por perceber a relatividade das temperaturas. Não faz tanto frio como os -40 graus da Rússia. O que acontece é que as povoações de Ushguli estão encaixadas num vale e não costumam sofrer com o vento, para além de que a sua proximidade com o Mar Negro acaba por as poupar de invernos extremos que costumam ser característicos das regiões de montanha.

O lugarejo seguinte é Chazhashi, aquele que está efectivamente classificado pela Unesco como património da humanidade. A quantidade de torres e edifícios em pedra é aqui maior e estão todos concentrados num curto espaço. O rio corre em baixo do casario enquanto que a montanha alta os protege.

É no topo de uma colina que fica a Supar, a residência de inverno da Rainha Tamar. Hoje resta apenas uma torre e ruínas da igreja, mas originalmente eram quatro torres, o lugar onde os antigos svans se reuniam para tomar decisões. A Torre da Rainha Tamar é um belo exemplo da arquitectura svan, ainda para mais instalada num lugar fantástico. É como se estivesse a dar as boas-vindas a quem chega a Ushguli. A residência de verão de Tamar fica logo acima, mas bem mais acima, na montanha.

Chvibiani e Zhibiani são lugarejos que se atravessam para se perceber a vida das gentes que os habitam. Com muitas casas de arquitectura familiar em ruína, têm certamente mais animais do que pessoas. Caminhos estreitos de terra e pedra, temos de ter cuidado para que um cavalo não venha por aí desalmado. Os porcos andam uns tresmalhados e outros a descansar. É aqui nestas povoações que percebemos melhor a abundância de xisto nas construções. Ele está em toda a parte. E é aqui também que me vem à memória Montesinho. Tão longe um do outro mas com tanto em comum: o ser remoto, as montanhas (salvas as diferenças e altitude), os animais deixados à solta, as construções em pedra e xisto, a simpatia daqueles que ainda lá habitam ou teimam em voltar, a timidez de outros. A solidão, até.

Caminhamos, enfim, até Lamjurishi. Nem é bem um lugarejo, é antes um ponto no território com uma colina com a Igreja da Virgem Maria e a sua torre defensiva. E que ponto este. Aqui ficamos face a face com o vale onde se ergue o Chkhara, o pico mais alto de toda a Geórgia. Esperamos um pouco e conseguimos ir vendo o seu cume por entre as nuvens densas que teimavam em escondê-lo, ameaçando com umas abertas aqui e ali.

Esta é pura paisagem com a tensão cénica a atingir os seus limites. São montanhas de paredes verdes lisas onde vacas e cavalos se vão deixando estar sem pressa de que o tempo corra. O mesmo connosco. Deixamo-nos estar a contemplar toda a magia deste lugar poderoso a que nos rendemos de imediato mas também sem pressa.

Escolhemos este ponto para a pausa de almoço, deliciando-nos com o típico kubdari, pão recheado com carne com tempero de fina cebola branca e sal de Svaneti. Só faltou a chacha, a vodka georgiana, para celebrar o momento, mas a majestosidade de Ushguli, literalmente “coração destemido”, já nos deixa suficientemente ébrios de tanta beleza.

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