Angra do Heroísmo

Angra, a do Heroísmo, já comporta no nome e no epíteto, “a muito nobre, leal e sempre constante”, muito da sua história e do seu carisma. Principal cidade da Terceira ilha do arquipélago dos Açores, é uma povoação como nenhuma outra em Portugal. A sua arquitectura lembra uma cidade colonial e, tirando Parati e Olinda, no Brasil, e Panjim, em Goa, colorido como este só o encontrei em algumas das cidades da América Latina que foi espanhola.

A alegre Angra, mostruário da roda das cores, sofreu a destruição cega do Sismo de 1980, mas soube reerguer-se e manter a sua autenticidade, porventura com mais cor do que antes, e viu a Unesco distinguir o seu Centro Histórico como Património da Humanidade em 1983.

Um passeio pelas ruas de Angra é, pois, um colírio para o nosso olhar. É isso que primeiro nos chama a atenção. Só depois percebemos a implantação geográfica da cidade, uma dupla baía protegida pelo vulcão hoje extinto do Monte do Brasil, e compreendemos o porquê de Angra ter sido um chamariz como porto de escala e abrigo para os barcos e caravelas que outrora cruzavam o Oceano Atlântico, transportando ouro e prata das Américas e especiarias do Oriente (Vasco da Gama parou aqui na sua primeira viagem de volta da Índia, em 1499).

Logo no final do século XV e princípio do século XVI, levantaram-se casas e mansões, igrejas e conventos. Artesãos e mercadores conviviam lado a lado com a nobreza e o clero. Elevada a cidade no ano de 1534, Angra tornou-se a primeira cidade moderna do Atlântico, um cruzamento de culturas. A sua importância estratégica não foi apenas comercial, mas também militar. Não admira, pois, que vejamos o Forte de São Filipe / São João Baptista – um dos maiores do Atlântico, construído pelos espanhóis aquando do domínio filipino em Portugal – a galgar e serpentear o Monte do Brasil.

A decisão da Unesco de distinguir o Centro Histórico de Angra do Heroísmo como Património da Humanidade teve tudo isto em conta – o seu modelo arquitectónico e a sua história global.

No que respeita à sua importância específica na história de Portugal, explique-se então o tal título de “muito nobre, leal e sempre constante”, sugerido por Almeida Garrett, que aqui viveu a adolescência. Durante o domínio filipino iniciou-se a construção de uma série de estruturas militares, como a do Monte do Brasil, a qual serviria para defender a cidade não apenas dos estrangeiros e corsários, mas também dos angrenses inconformados com o resultado da crise sucessória do reino de Portugal. Após a Restauração, em 1640, D. João IV agraciou a cidade com o título de “Sempre Leal Cidade de Angra”. Mais tarde, na sequência da disputa entre os irmãos Pedro e Miguel, liberais e absolutistas, D. Maria II agraciou-a com um novo título, “Mui Nobre e Sempre Leal e Constante Cidade de Angra do Heroísmo”, reconhecendo o apoio da cidade à causa liberal.

Vamos, então, a um passeio por Angra. O Centro Histórico é compacto e coerente, formando um conjunto homogéneo. Forte de São João Baptista de um lado, Forte de São Sebastião do outro, sobe aqui, desce ali, Atlântico no horizonte, casario e igrejas mesmo ao pé. Há que calcorrear sem pressa as suas ruas que obedecem a um desenho urbano renascentista, e já não medieval como a maior parte das cidades antigas do continente. A Rua Direita e a Rua da Sé continuam até hoje como as suas principais vias, integradas num sistema de ruas secundárias perpendiculares ao mar. As suas ruas podem nos dias de hoje ser consideradas estreitas, mas Nemésio descrevia-as como “ruas largas, bem calçadas, ladeadas de passeios espaçosos. A cada canto ergue-se um cunhal de casa nobre, com portas de lojas de modas povoadas de caixeiros estilados”.

Alguns destaques:

A Sé de Angra, implantada bem no centro da cidade, é o principal edifício religioso da ilha. De cor branca e frisos em tom pastel, as suas duas torres cónicas de riscas pretas avistam-se de quase qualquer ponto da cidade. A sua construção iniciou-se em 1570 e o seu largo adro com escadaria serve até hoje como ponto de encontro para os habitantes locais.

Deste adro avista-se ao longe o Outeiro da Memória, lugar elevado onde foi construída a primeira fortaleza da cidade e onde hoje fica o monumento liberal erguido em honra de D. Pedro IV – o obelisco “amarelo e banal”, nas palavras de Nemésio, “onde se descobre toda a cidade para lá das árvores e das terras dos Cortes-Reais da Terra Nova”. A vista daqui é soberba, ficando aos nossos pés todo o emaranhado do casario de Angra guardado pelo Monte do Brasil e os ilhéus das Cabras mais ao fundo.

Da Memória podemos descer a declivosa Angra até ao seu centro pelo Jardim Duque da Terceira (com algumas perturbações pelas obras de expansão e renovação do jardim). Este é um pedaço de elegância e tranquilidade. À sua volta, uns quantos conventos e igrejas e palácios:

Convento de São Francisco (onde está actualmente o Museu de Angra)

Antigo Colégio da Companhia de Jesus, constituído hoje pela Igreja de Nossa Senhora do Carmo e pelo Palácio dos Capitães-Generais (onde, conta Nemésio, “D. Pedro IV jogava bilhar e de onde partia depois de uma noite de baile para as suas surtidas de amor”)

Igreja da Conceição

Palacete Silveira e Paulo (ladeado pela contemporânea Biblioteca Pública e Arquivo Regional).

Um provérbio açoriano versa “São Miguel, burgueses ricos; Terceira, fidalgos pobres; Faial, contrabandistas espertos”. Os fidalgos podem ser pobres, mas a sua marca distinta está em cada canto de Angra do Heroísmo.

A Praça Velha é um dos lugares mais bonitos e equilibrados da cidade, para onde confluem as principais artérias de Angra. Aqui fica o belo edifício da câmara municipal, mas com obras à sua frente preferi desviar o olhar para a delicada igrejinha azul e para as janelas ogivais do edifício branco que a ladeia, bem como para o pavimento artístico empedrado desta praça, o mais antigo e primeiro centro cívico da cidade.

Da Praça Velha a Rua Direita transporta-nos até ao mar. Onde hoje vemos a Igreja da Misericórdia foi antes o lugar do primeiro hospital da povoação, logo à beira do mar, acolhendo os forasteiros que aqui buscavam abrigo após uma longa jornada marítima.

O Castelo de São Sebastião, hoje Pousada, mais distante à esquerda guarda o porto na baía.

De volta ao centro da cidade, onde o encanto pelos seus edifícios de janelas e varandas coloridas é maior, observamos a companhia de mais uns palácios e conventos, como o Palácio Bettencourt com as armas da família, o antigo Palácio Episcopal e o Convento de São Gonçalo.

Para admirar Angra de um outro plano, nada melhor do que uma subida ao Monte do Brasil. O Forte de São Filipe, posteriormente renomeado de São João Baptista, pode ser uma enorme estrutura militar com as suas muralhas e baluartes a dominar grande parte deste Monte.

Mas o que acaba por roubar os nossos sentidos é a enorme caldeira e a vista do Pico das Cruzinhas. Daqui do alto confirmamos ser Angra do Heroísmo uma cidade feita para o mar e para ele virada e relembramos Nemésio: “Angra parece uma ave de papo branco e asas abertas – o belo e elegante pernalta a que lá chamam joão-cardoso”.

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