São Jorge, um passeio pela costa sul

Velas é a principal povoação da ilha de São Jorge. É bem simpática e pitoresca. Chega até a ser monumental, com o devido grau de grandeza que pode ser conferido a algo numa pequena ilha quase perdida no Atlântico, embora bem acompanhada pelas suas camaradas Faial, Pico, Terceira e Graciosa. Em dias de boa visibilidade, qualquer uma destas ilhas do grupo central pode ser avistada desde São Jorge e é talvez em São Jorge que faz mais sentido o afirmado por Raul Brandão, segundo o qual “o que as ilhas têm de mais belo e as completa é a ilha que está em frente”.

A dita monumentalidade de Velas começa na forma com que recebe os visitantes que chegam ao seu porto – o Portão do Mar, encimado com as armas reais de Portugal, é o que resta da antiga fortaleza de defesa da vila. Vila pequena e compacta, a igreja matriz fica logo acima e uns metros mais adiante o belo edifício barroco da câmara municipal que dá para o Jardim da República. É aqui que o encanto de Velas melhor se percebe.

Este pequeno jardim está bem arranjado, com decorações quer de canteiros quer de árvores, e no centro tem aquele que costuma ser descrito como um dos mais bonitos coretos de Portugal. Os seus apontamentos em tom vermelho, como também se veem no edifício da câmara, produzem um contraste mágico com o verde do jardim e o verde que vemos galgar a encosta da vila por trás de um conjunto interessante de edifícios onde desfila até um com fachada em art déco.

A branca Velas é ainda abalada, mais acima, pelas cores alegres do Império Bairro da Conceição e pelo amarelo do edifício do Auditório Municipal e Centro Cultural das Velas. Em forma de vela de barco, à beira mar pousa esta quase embarcação que traz atrás de si, já para além do Canal, o Pico com o Piquinho descoberto. Foi aqui, na marginal de Velas, onde ficam umas piscinas naturais envolvidas pela pedra escura vulcânica, que obtive um dos mais magníficos cenários de toda esta minha viagem pelas ilhas do grupo central do arquipélago dos Açores. Um fim de tarde de pura tranquilidade, nevoeiro cerrado em São Jorge, mas como compensação uma vista grandiosa para o Pico.

O porto de Velas está situado a uma cota baixa, claro, mas a vila desenvolve-se morro acima. Os miradouros do Canavial e de Velas deixam perceber a sua implantação, entre morros e baías, com muito verde da vegetação e azul do mar ao redor.

A noroeste de Velas fica a Ponta dos Rosais. Passei a povoação de mesmo nome, ainda sem nevoeiro, e, depois, nada. Gostaria de ter caminhado pelo Parque Florestal das Sete Fontes e daí seguir até ao cantinho mais ocidental da ilha, mas nada, não se via um palmo à frente.

Meia volta, rumo ao centro da ilha. Na globalidade, novamente sem muita sorte com o clima, ainda consegui algumas abertas para avistar a paisagem da costa sul, com o aeródromo em primeiro plano, desde o miradouro das Macelas.

Não vale a pena mais lamentos, resta reter o intenso verde da ilha (diz-se que a mais verde do arquipélago) e a imagem ora de prados ora de relevos na paisagem cheia de cones vulcânicos revestidos a tapete liso verde com uns adereços mais verdes ainda que tornam, aqui e ali, esses tapetes felpudos.

A Urzelina é mais uma povoação à beira mar na costa sul da ilha. O seu atípico nome deriva de urzela, a planta tintureira que abunda nas rochas do seu litoral. Este litoral é feito de rocha negra vulcânica, no qual se vão formando algumas piscinas naturais. Mas aqui na Urzelina essas rochas tomaram umas formas tais que levaram a que se formassem uns arcos por onde a água entra e se mantém, umas vezes tranquila, outras certamente mais bravia. É uma paisagem estranha, desolada, até, e nem o Pico em frente – uma vista constante quando na costa sul – e o canto das aves nos confortam.

Em 1808 aconteceu uma erupção vulcânica do Vulcão da Urzelina que destruiu grande parte da povoação. Milagrosamente, dizem os relatos da época, quando a torre da então igreja se preparava para ser engolida pela lava, esta recuou e a Torre Velha aqui está, até aos nossos dias, em pé para contar parte da sua história.

E a Urzelina é ainda famosa por Francisco de Lacerda, compositor e maestro, um dos nomes maiores das artes portuguesas, aqui ter vivido. Nascido na não muito distante Ribeira Seca, foi para a casa de família da Urzelina que optou por vir viver após uma temporada em Paris.

Seguindo sempre junto à costa, passamos por Manadas e a sua Igreja de Santa Bárbara, classificada como Monumento Nacional. Um pouco mais adiante avistamos desde cima a Fajã das Almas. O Pico da Esperança fica nesta direcção, lá bem cima, e neste momento continuava fechado.

A Calheta é uma das principais povoações da ilha. Aqui fica a Indústria Conserveira Santa Catarina. Como fã das suas conservas de atum com os mais variados temperos, não pude deixar de a visitar e tentar adquirir alguns dos seus produtos. Mas não, que não os podiam vender porque o sistema informático estava em baixo. Como detesto queijo, não pude sequer resguardar-me numa alternativa como o tradicional queijo da ilha, originário desta mesma ilha, São Jorge – são cerca de 20000 as vacas leiteiras que pastam por qualquer canto, conhecidas como as vacas mais felizes do mundo. Restou-me, mais tarde, uma passagem pela Dulçores, abastecendo-me de “espécies”, o doce típico de São Jorge, umas rosquinhas de massa tenra com especiarias como ervas doces, canela e pimenta.

Continuando pela costa, após passarmos a Ribeira Seca em direcção à Fajã dos Vimes, uma série de pontos de vista panorâmicos abrem-se na paisagem. Este foi, para mim, o mais bonito trecho na costa sul. A estrada tem à sua direita o mar e à esquerda as encostas cerradas de vegetação. Veem-se rasgos nas arribas que deixam cair várias linhas de água das ribeiras que nascem na Serra do Topo e que hão de desaguar no Atlântico. Em alguns pontos podemos parar para refrescar junto a umas casinhas de pedra bem recuperadas. E em outros pontos assistimos ao recorte único da ilha.

A Fajã dos Vimes, bem como a Fajã dos Bodes um pouco mais adiante, repousa sossegadamente aos pés das ravinas. Longe de ser a mais isolada das fajãs, com espaço para se cultivar alguns rectângulos de terra e até para plantar café – caso raro em terras europeias -, não deixa, no entanto, de se viver aqui espremido entre a enorme rocha e o infinito Atlântico e sujeito aos humores da natureza, sejam terramotos, tempestades ou enchentes. Nesta Fajã encontramos o Café Nunes e as Colchas da Fajã dos Vimes, duas instituições da ilha. As colchas em lã de ponto alto com motivos geométricos eram feitas nos antigos teares de madeira de pedais. Nos dias de hoje esta arte é apenas mantida por uma ou duas senhoras, mas podemos ver seus exemplares numa pequena loja de artesanato da povoação.

Pela estrada que se chega à Fajã dos Vimes, assim se sai dela. Ou seja, há que voltar à Ribeira Seca e tomar a estrada principal que nos há-de levar até à outra ponta da ilha. Antes, porém, uma paragem na Reserva Florestal de Recreio da Silveira, para mais uma imersão no verde e na cultura da ilha.

Passamos a Serra do Topo e o costumeiro nevoeiro traz velhos receios. Conseguirei ver alguma coisa da Fajã de São João?

Arrisco a descida e, sim, ali está ela e leva logo o segundo prémio da mais bonita fajã (porque o primeiro, esse, já estava entregue ex-aequo para outras parceiras da costa norte). Vê-se uma vez mais a língua de terra saída da arriba para beijar o mar e umas quadrículas de terras de cultivo – para além da produção de vinho, a Fajã de São João era reconhecida pelas suas boas plantações de figos, nozes, laranjas, ananases e também café. A estrada até à Fajã de São João é das mais aterradoras. Curvas fechadas e estreitas, paisagem a pique. De repente a estrada deixa de ser de asfalto e passa a terra. Recuo e subo tudo em direcção ao nevoeiro. De volta à estrada pergunto a uns locais se vale a pena seguir até à Ponta do Topo. Que sim, que logo à frente o nevoeiro deixa de existir. E não é que aconteceu isso mesmo? Estes açorianos são uns experts em clima.

À costa oriental da ilha não se vem (só) pelas povoações de Santo Antão e do Topo. A estrada até lá é belíssima, a lembrar que não é o destino que importa, antes o caminho que se toma. E, depois, chegados à Ponta do Topo damos com um raso ilhéu à nossa frente, o Ilhéu do Topo, até onde no Verão as vacas nadam para pastar no seu prado verde, apoiadas numa corda puxada pelos homens no barco. O céu estava incrivelmente limpo. Procurei, mas sem encontrar não achei a Terceira, a ilha onde aterraria daí a umas poucas horas.

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