Uma volta pela Terceira

Há quem diga que a Terceira é a ilha do arquipélago dos Açores com mais diversidade. Com uma cidade distinguida como Património da Humanidade, pejada de igrejas, conventos e palacetes, rica em tradições e festividades e com uma gastronomia muito própria, o seu património construído e a sua cultura encontram um fortíssimo rival na paisagem natural. Montes e planícies, crateras de vulcões e grutas, praias e piscinas naturais, aqui tudo se encontra.

Iniciaremos este percurso circular pela ilha Terceira no Monte do Brasil, o guardião natural de Angra. Esta península é o que resulta de um antigo vulcão, hoje extinto, mas que nos deixou uma caldeira e vários picos. Em quase todo o Monte do Brasil se podem encontrar as muralhas e baluartes ou pelo menos vestígios da grandiosa fortaleza de São João Baptista. Mas à parte a vertente militar, este é também um espaço recreativo e de lazer, com o Relvão e parques de merendas. Em post anterior já tínhamos percebido como a vista do Pico das Cruzinhas para a baía de Angra é fabulosa, mas dirigindo o olhar para ocidente temos uma vista igualmente superior da costa sul, onde se destaca a povoação de São Mateus da Calheta.

Já na estrada, cá em baixo, rapidamente chegamos a São Mateus. Esta vila piscatória, outrora um centro baleeiro, tem uma baía bem pitoresca com um porto de pesca muito movimentado. Não é de estranhar, pois, que aqui fique um dos mais afamados restaurantes da ilha, o Beira-Mar.

Seguindo pela costa damos com a igreja velha da povoação, descascada no final do século XIX por um forte ciclone, e chegamos à Ponta das Cinco, lugar de umas piscinas naturais.

Esta zona costeira das Cinco Ribeiras é de uma ruralidade comovedora. Com o mar azul de um lado e montes verdejantes do outro, tomamos as estreitas canadas e deambulamos pelo meio das pastagens divididas por pequenos muros de pedra – os cerrados – e ocupadas pelas vacas.

Pela costa ocidental da ilha vão aparecendo alguns pontos de vista de excelência, como o miradouro da Ponta do Queimado ou Ponta da Serreta. Antigo lugar de vigia da baleia, este é um promontório bem alto numa costa agreste e dura. Surpreende, pois, que logo ali junto ao mar rochoso se desenvolva uma mata cerrada. Não desviamos quase nada para o interior e logo damos com a Reserva Florestal da Serreta, um bosque de recreio e lazer muito rico em espécies arbóreas.

De volta à costa, mais um miradouro, o da Ponta do Raminho.

Nesta jornada já havíamos passado por uns quantos “impérios” e igrejas e agora segue-se Altares e uma paragem para almoçar uma alcatra de carne no restaurante Caneta.

De volta à estrada de barriga cheia, a vista do Pico Matias Simão é como que a sobremesa bónus. Ao nosso redor, tudo o que vemos é a planície recortada em rectângulos verdejantes que repousam junto ao mar.

Segue-se Biscoitos. Não outra sobremesa, mas antes a zona de veraneio por excelência da Terceira, graças ao seu microclima especial que faz com que aqui esteja quase sempre bom tempo para um mergulho nas suas piscinas naturais, as mais fantásticas da ilha. Biscoitos é o nome que se dá no arquipélago aos terrenos formados pelas lavas que resultam das erupções vulcânicas. Nesta povoação à beira mar a terra parece queimada, cortesia da dita lava que se transformou em rochas de basalto preto. E essas rochas tomaram aqui formas deliciosas que deram origem a recantos por onde o mar vai entrando.

Imediatamente a seguir às piscinas naturais, ainda na costa, vemos outro cenário também surpreendente na rocha escura: uma série de trincheiras que fizeram parte do sistema defensivo militar da ilha construído e usado na II Grande Guerra Mundial. Crê-se, no entanto, que sistema semelhante tenha sido igualmente usado numa época anterior, nos séculos XVI e XVII, para fazer face aos ataques dos piratas e corsários.

E os Biscoitos são ainda famosos pela sua tradição vinícola, sendo a única região de vinhos demarcada na ilha Terceira. O referido microclima e o engenho do Homem na adaptação do terreno à sua subsistência fez com que as pedras de basalto fossem utilizadas para a construção das curraletas que protegem as vinhas dos ventos. À semelhança do que víramos na ilha do Pico, também o verdelho vinga neste terreno e faz as delícias dos apreciadores de vinho.

Prosseguindo pela costa norte da ilha, duas praias aparecem para alegria dos entusiastas das paisagens costeiras. A Alagoa da Fajãzinha é uma pequena delícia. Junto à Ponta do Mistério, nas Quatro Ribeiras, a costa é escarpada e o mar chega a rebentar violento contra a rocha. Pequenas baías e promontórios dominam a paisagem, mas eis que por aquele cenário de lavas recentes surge um pedaço de terra que se estende ilha adentro, parecendo ter vencido a batalha da costa escarpada. É a dita Fajãzinha, uma pequena praia não de areia mas de pequenas pedras junto à beira mar, os detritos que os deslizamentos dos montes foram acumulando ao longo dos séculos. É muito curioso ver como no meio da lava vão-se já sobrepondo pedaços de vegetação.

As Escaleiras é outra praia surpreendente. Descemos do parque de estacionamento e vamos sentindo o mar barulhento a quebrar na rocha lá em baixo. Mas lá em baixo, no entanto, abre-se uma baía e, apesar de uns quantos surfistas na água, o mar parece mais tranquilo, protegido pelos morros altos que o recebem.

A costa norte da Terceira, a tornar-se nordeste, é onde fica a Base Aérea das Lages, utilizada quer pela Força Aérea Portuguesa, quer pela Força Aérea dos Estados Unidos da América, servindo igualmente como o aeroporto da ilha.

A Praia da Vitória é a segunda maior povoação da Terceira e uma das primeiras escolhidas pelos povoadores da ilha para se estabelecerem logo à sua chegada no século XV. O nome “da Vitória” foi-lhe acrescentado já no século XIX, por carta régia de D. Maria II, em reconhecimento do seu papel na Guerra Civil Portuguesa, quando a então vila se opôs ao desembarque das tropas miguelistas. O apoio aos liberais valeu-lhe os títulos de “Mui Notável” e “da Vitória”.

E para a história esta será, para sempre, a terra natal de Vitorino Nemésio. A casa onde nasceu foi transformada em Casa-Museu Vitorino Nemésio e muitos outros lugares por onde passou estão devidamente assinalados, como a Casa das Tias. As cores da hoje cidade da Praia da Vitória dão-lhe, por si só, um encanto muito próprio. Mas, depois, temos ainda os belos edifícios da Igreja Matriz e dos Paços do Concelho. E temos, ainda, a dita praia, reconhecida como o mais extenso areal de todo o arquipélago dos Açores, com uma promenade bem cuidada e uma pequena marina. O fim de tarde escuro e a areia igualmente escura e em dragagens acabaram por não me parecer o convite ideal a um momento de contemplação do Atlântico, mas acredito que com outras cores este possa ser um postal para mais tarde recordar.

A Praia acaba por ser uma baía e a Serra do Facho protege-a. Do seu alto um miradouro serve-nos de ponto de vista para toda esta região da ilha, com as costas da Serra do Cume ao fundo. E da Serra do Cume, claro, avista-se a Praia da Vitória.

A imagem do vale verdejante da Serra do Cume é, talvez, a mais repetida de toda a ilha Terceira. A maior cratera do arquipélago transformou-se num quadriculado de pastagens e terras de cultivo, conhecida localmente por “manta de retalhos”. E é isso mesmo que esta imensa planície rodeada por pequenos montes nos faz lembrar.

Do miradouro da Serra do Cume avistam-se ao longe os Ilhéus das Cabras. Antes de os termos mais perto de nós, porém, há que passar pelas povoações de Porto Martins, pela bela aldeia de São Sebastião e por Porto Judeu (perdendo, no caminho, uma ida até à Ponta das Contendas – lá está, há que deixar sempre algo para uma próxima visita às ilhas), estas duas últimas com umas igrejas bem bonitas. Porto Judeu é imperdível, pois é lá que fica o restaurante Boca Negra, afamado pela sua alcatra de peixe.

Daqui até Angra é um tirinho, passando por muitos “impérios” na beira da estrada junto à Feteira, e quase sempre com os Ilhéus das Cabras por companhia, repousando tranquilamente sobre as águas do Atlântico.

Estas duas fotogénicas ilhotas são o resultado de um vulcão, partido ao meio pela erosão marinha e pelas movimentações tectónicas ao longo dos tempos. Sobre estes cones verdes escreveu repetidamente Nemésio, primeiro, em Mau Tempo no Canal, referindo-se a eles como tendo “o aspecto de um pão a que se esgaça um bocado” e, depois, em Corsário das Ilhas como, como “a estátua da nossa solidão”. E é com esta imagem, da solidão do ilhéu, que chegamos de volta a Angra, cidade para onde historicamente confluíram todos os solitários que cruzavam os mares.

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