Maramures

Localizada no noroeste da Roménia e na fronteira com a Ucrânia, Maramures é uma das regiões mais rurais e isoladas da Europa, um recanto onde o tempo parece parado algures numa era remota e onde as tradições perduram desde há séculos. Romanos, magiares, turcos e polacos passaram por aqui mas nunca se conseguiram impor e dominar a região e os habitantes de Maramures orgulham-se do seu espírito indómito que a tudo lhes tem permitido resistir.

Há anos havia assistido a um documentário na RTP2 sobre Maramures, um daqueles que parecem saídos da época em que este canal só abria a sua emissão no período da tarde. Não mais esqueci esse documentário e a região tinha, por isso, de ser incluída neste meu itinerário pela Roménia. Paisagens verdejantes e ondulantes, carroças puxadas por cavalos como meio de transporte (ainda) principal de pessoas e bens, mulheres vestidas em trajes típicos e igrejas de madeira, todos estes elementos eram já personagens principais do dito documentário e visitada Maramures neste ano de 2019 pude constatar que todas essas personagens não são ficcionais, são bem reais, parte do dia a dia.

Maramures é, pois, como que um museu a céu aberto. Para o descobrir, nada melhor do que alugar um carro e sair para conhecer este museu vivo.

Nesta região maioritariamente de aldeias, Baia Mare e Sighetu Marmatiei são as duas principais cidades. Começámos o nosso itinerário em Baia Mare, a maior delas, para onde se pode voar directamente desde Bucareste. O seu nome não tem nada a ver com mar ou lagoas, pelo contrário, é uma cidade do interior. Não sei o que significa “Baia”, mas “Mare” significa “grande”. E na verdade esta é como que duas cidades numa. Uma delas com longas avenidas e grandes blocos de apartamentos, com uma enorme catedral ortodoxa como destaque, tudo marcas de uma cidade industrial que se desenvolveu exponencialmente nos anos do comunismo. E uma outra com um centro histórico pequeno mas bem restaurado onde se destacam o Bastião Macelarilor (significa algo como talho ou matadouro), um conjunto de belas igrejas e a espaçosa e luminosa Praça da Liberdade com os seus edifícios medievais.

Mas porque não são as cidades que nos interessam em Maramures, de Baia Mare saímos rapidamente rumo a norte numa estrada fantástica de montanha para um périplo de dois dias pela região rumo à sua ruralidade. Sobe-se a bom subir, curva apertada contra curva apertada, sob um protector chapéu de abas imensas feito de arvoredo cerrado. Um lamento, porém, na falta de espaço para poder parar o carro na beira da estrada e admirar aquele cenário grandioso.

Os rios nunca andam muito longe de nós em Maramures e depois de serpentearmos com o carro pelo meio da floresta aparece-nos uma cascata à beira da estrada quase a chegar à povoação de Mara. Junto à dita cascata é um bom local para uma paragem para almoço, num daqueles restaurantes típicos do centro da Europa, instalado no meio da natureza e com mesas espalhadas por um jardim, onde as trutas são o prato forte.

Passada Mara, começa o desfile de aldeias ao longo de montes e vales e confirmamos toda a cativante ruralidade e autenticidade de Maramures. Foram as aldeias, e em especial as suas igrejas de madeira, que nos fizeram querer visitar a região. A estas igrejas de madeira, algumas datadas do século XIV e muitas classificadas pela Unesco como Património da Humanidade, dedicaremos o próximo post, mas assinalamos desde já a de Breb, a nossa primeira paragem.

Breb é uma das aldeias mais reputadas e procuradas de Maramures. Lugar remoto, para lá chegarmos temos de fazer um desvio numa estrada secundária. Após uma curva apertada começamos a descer e o cenário para lá do pórtico de recepção é majestoso. A aldeia está preenchida de casas de madeira e no seu final, quase que escondida no meio da vegetação, encontramos a igreja de madeira datada do século XVI. Para além de mim, apenas mais um visitante (romeno?). O ambiente é mágico, um pequeno e mimoso edifício totalmente em madeira rodeado de um verde intenso. E, afinal, não estamos sozinhos. Muitos corpos e almas repousam aqui, uma vez que é costume local sepultar os mortos ao redor das igrejas. Não me assusta nem incomoda deambular pelas campas, sempre em busca de um ponto de vista ainda mais fantástico e bucólico nesta paisagem ligeiramente alterada pelo Homem.

A Breb seguiu-se Budesti, Sarbi, Calinesti, Barsana, Ieud e Poienile Izei. No dia seguinte, viriam Cornesti, Giulesti, Manastirea, Sat-Sugatag e Desesti. Mais do que os nomes difíceis, o que ficará na memória é a delicadeza das pequenas igrejas com torres altas destas aldeias, repito, inteiramente construídas em madeira. Não é à toa que Maramures é também designada como a civilização da madeira. Quase todo o território é floresta e o aproveitamento dos recursos naturais como a madeira é omnipresente. Seja para a construção das casas, das igrejas, dos utensílios, o uso da madeira realça ainda a qualidade superior dos artesãos de Maramures.

Se as igrejas são o seu indisputado ex-libris, os portões de madeira das residências mesmo junto à beira da estrada merecem igualmente toda a nossa atenção e arrebatam-nos por igual. Característicos da região, possuem motivos decorativos que incluem desde cenas da vida quotidiana a cenas religiosas, e servem como pórtico de separação do espaço exterior e interior, constituindo também uma demonstração do poder das famílias, sendo em Barsana que melhor se pode apreciá-las.

O portão desta foto pertence, todavia, a um espaço de Dragomiresti onde está instalado um pequeno museu etnográfico que representa uma casa típica de Maramures.

Entramos e um pátio ajardinado recebe-nos, com algumas esculturas pelo caminho. Uma velhota em trajes típicos, camisa branca com motivos florais e lenço na cabeça, guia-nos e explica-nos os moldes da casa típica de Maramures. Eu não falo romeno, ela não fala senão romeno. Incrivelmente, entendemo-nos e não apenas pelos gestos mas também pela similitude das duas línguas faladas, romeno e português, e entabulamos uma conversa improvável. Mostra os bolos que se servem nos dias de festas, os vários utensílios do dia a dia, quase todos eles incrivelmente datados, trajes, fotos, um verdadeiro mini-museu etnográfico.

De volta à estrada, e fugindo das principais, a tranquilidade é absoluta e é aqui que somos mais felizes. Paramos, enfim, o carro num qualquer pedaço de estrada sem temer o incómodo de seja quem for e deixamo-nos estar a contemplar uma paisagem maior. Uma silhueta de montes de recorte delicado, verde sobre verde, montinhos de palha artisticamente empilhados aqui e ali, um rio sempre a correr por perto, discreto e sereno como a terra que o acolhe.

Não é preciso vir para estas estradas para se verem carroças puxadas por cavalos – elas estão por toda a parte e parecem em número superior aos tratores – mas é por aqui que vemos os trabalhadores agrícolas em acção e percebemos melhor como esta actividade é ainda maioritariamente um trabalho manual. Homens e mulheres, elas sempre de lenço na cabeça, como se vê cada vez menos no nosso país, trabalham a terra e esse é o seu principal sustento.

Mesmo a norte, na fronteira com a Ucrânia, fica Sighetu Marmatiei, a segunda cidade de Maramures em dimensão e a sua antiga capital. Cidade pequena, bem cuidada e agradável, aqui encontramos um número surpreendente de museus, entre os quais a Casa Museu de Elie Wiesel, escritor Prémio Nobel da Paz em 1986, e o Memorial das Vítimas do Comunismo e da Resistência. Neste edifício, entretanto transformado em museu, funcionava uma prisão para onde após a II Grande Guerra Mundial foram enviados os opositores do regime comunista romeno. Caminhando hoje pelos corredores, celas e jardim da antiga prisão aprendemos sobre a história do comunismo na Roménia e países vizinhos e tentamos imaginar o dia a dia dos presos políticos e as condições que aqui encontravam, incluindo tortura.

De Sighetu Marmatiei a Sapanta é um pulinho de meia hora. E Sapanta é talvez o lugar mais surpreendente de toda a região, embora não seja nenhum segredo. Pelo contrário, durante dois dias não vi turistas por Maramures, mas em compensação em Sapanta parecia ter acabado de chegar charters de chineses. E o que se visita em Sapanta? Apesar do Mosteiro Peri (um conjunto de edifícios religiosos de madeira, incluindo aquela que se diz ser a mais alta igreja de madeira da Europa, com 78 metros de altura), a Sapanta vimos sobretudo visitar o seu cemitério. Estranho? E se dissermos que o nome deste cemitério é “Merry”, cuja tradução é “alegre”? Mais estranho ainda, não é? Mas é verdade, Sapanta tem um cemitério digno de visita e este é um lugar alegre. E a alegria aqui tem cor, azul da cor da esperança e da liberdade e, já agora, do céu.

Já se disse que Maramures é terra de artesãos e um deles, certamente dos mais brilhantes e criativos, de nome Stan Ioan Pătraș, decidiu nos anos 30 do século passado começar a esculpir cruzes de madeira com figuras e poemas dedicados a cada um dos mortos a enterrar no cemitério Merry de Sapanta. Até 1977, ano da sua morte, terá criado quase 1000 destas verdadeiras obras de arte, arte esta continuada hoje por um seu discípulo, Dumitru Pop. Neste cemitério-museu caminhamos pelas sepulturas observando demorada e detalhadamente as cruzes azuis de cada uma delas com figuras – um pastor, um padre, uma tecedeira, um polícia -, lamentando não saber romeno para poder ler a história de cada um deles contada sob a forma de epitáfio. Esta forma descontraída, alegre e viva de encarar a morte vem dos Dacias, o povo ancestral donde os romenos descendem, os quais entendiam que a morte significava apenas uma passagem para uma vida melhor. E, saídos deste cemitério com um sorriso enorme, duas certezas tomam-nos, a de que a vida deve ser celebrada e a de que a nossa última morada pode ser colorida.

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