O Beato fica logo a seguir a Marvila (ou o contrário, se viermos do centro de Lisboa), tão juntos que as suas fronteiras passam despercebidas. O Vale de Chelas continua uma dominante, o carácter industrial mantém-se e o abandono, a degradação e a regeneração urbana são também uma evidência.
Se a Marvila arrabalde histórico de Lisboa era o lugar das quintas, agora no Beato e Xabregas são os conventos que marcaram e continuam a marcar a paisagem.

Desde logo, o Convento de Chelas. Mas, faz sentido, num texto dedicado à zona ribeirinha, falar de algo situado a 2 kms do Tejo? Sim, faz. O Convento de Chelas, também conhecido por Mosteiro de São Félix dos Mártires, fica na muito antiga Estrada de Chelas, em tempos um esteiro do mar que rompia pelo vale acima. Também muito antigo é este convento, embora o edifício actual nada tenha a ver com o primitivo. Crê-se que aqui existiu um templo dedicado a Vesta, a deusa do fogo dos romanos, e Aquiles teria por aqui passado. Aliás, alguns historiadores aventam a possibilidade de o topónimo “Chelas” derivar de “Achilles” e eu, claro, apesar das muitas dúvidas gosto de acreditar na ideia – já se vê que também adoro a hipótese de “Olissipo” derivar de “Ulisses”. Bom, as origens do Convento de Chelas podem não ser tão antigas assim, mas seguro é que no século III recebeu as relíquias de São Félix e outros mártires. No século VIII a igreja foi destruída pelos mouros, mas os monges continuaram a habitá-lo. Quanto em 1147 D. Afonso Henriques conquista Lisboa aos mouros, o Convento estava em ruínas, tendo sido então restaurado e povoado de novo de frades e freiras. Em 1834, ano da extinção das ordens religiosas, aqui habitavam as freiras Regrantes de Santo Agostinho e também por isso é que este é conhecido como Convento de Santo Agostinho. Muitas mudanças ao longo dos séculos, já se vê. O mar já não está à porta e agora é o Arquivo Geral do Exército que guarda os segredos do antigo espaço conventual. A arquitectura exterior do edifício é desengraçada, um imenso bloco amarelo, mas conseguimos espreitar e descobrir no seu interior um portal manuelino delicioso, deixando-nos a sonhar como serão os seus claustros.
O que não mudou com a passagem do tempo foi a ruralidade da zona, com muitas hortas e azinhagas pelo meio. Vimos por aí abaixo, pela Estrada de Chelas, e percebemos as muitas fábricas desactivadas, abandonadas e em ruínas. Aqui chegaram a existir fábricas de licores, malhas, estamparia, tinturaria, tecidos, tabaco, moagem, tanoaria, cortiça, até cocheiras. E muitas vilas e bairros operários, como a Vila Flamiano e a Vila Dias (recentemente comprada pela câmara). Não entramos no Bairro da Madre de Deus e passamos sem parar pelo antigo Mercado de Xabregas, que desde 2017 acolhe a ArCo – Centro de Arte e Comunicação Visual. Uma baralhação esta zona de Lisboa. “Cidades Jardim” que mantém a sua integridade lado a lado com vilas operárias degradadas. Residências artísticas e espaços de co-work lado a lado com a mais miserável vida de rua.

Chegamos, então, à zona ribeirinha do Beato e Xabregas. O fim das ordens militares e a Revolução Industrial levou à reconversão de antigos conventos em unidades fabris, e com as fábricas e o comboio a paisagem alterou-se – uma das imagens da Xabregas de hoje é, precisamente, a da ponte do comboio com as chaminés das fábricas atrás. No entanto, esta zona de Lisboa retém ainda diversos testemunhos do seu rico passado histórico. Os nossos dois primeiros exemplos são, não apenas testemunho de um passado, mas também uma projecção do futuro, o Convento do Beato e o Convento das Agostinhas.
O Convento do Beato, também conhecido por Convento de São Bento de Xabregas, foi mandado construir no século XV pelo Rei D. Afonso V como disposição testamentária da sua mulher, que pretendia que aí se edificasse um hospício. Mas acabou por ser Frei António da Conceição que levou a cabo a construção do convento – e com poucos recursos financeiros, o que aumentou a sua fama de milagreiro. Daí que o Convento de São Bento de Xabregas acabasse por ficar mais conhecido como o Convento do Beato António. Após a extinção das ordens militares, foi Real Hospital Militar, foi destruído por um incêndio, comprado pelo industrial da marca “Nacional” (que até hoje vemos anunciada) para aí instalar a sua fábrica de moagem de cereais, panificação, malte e armazém de vinhos. E, hoje, o Convento é usado para eventos diversos e segue curso o projecto de urbanização de parte do espaço.
Já o Convento das Agostinhas (ou das Grilas) é hoje mais (re)conhecido como o Hub Criativo do Beato. Ex-Convento, ex-Manutenção Militar, mais uma enorme transfiguração se aguarda, desta vez com a transformação do seu imenso espaço (35 mil metros quadrados e duas dezenas de edifícios degradados) num pólo de empreendedorismo, indústrias criativas e inovação. Aguardemos para ver se o projecto megalómano se concretizará.
Quase em frente encontramos o Palácio do Duque de Lafões (ou Palácio do Grilo). Construído após o Grande Terramoto de Lisboa de 1755, a pequena quinta de veraneio foi transformada em residência permanente dos duques. Lá se mantém, embora agora sem a alameda que ligava o palácio ao cais privativo da família no Tejo.

Mais uns passos adiante na Rua do Grilo trazem-nos o Convento e Igreja do Grilo (de outros nomes Recolhimento de Nossa Senhora do Amparo ou Convento de Nossa Senhora da Conceição do Monte Olivete e Igreja de São Bartolomeu ou Igreja Paroquial do Beato). À semelhança do anterior Convento das Agostinhas, também este foi mandado construir por Dona Luísa de Gusmão, no século XVII, para os Irmãos Descalços de Santo Agostinho (este para os frades e o outro para as freiras). Com a extinção das ordens religiosas o antigo convento foi transformado no Recolhimento de Nossa Senhora do Amparo ou do Grilo.
Entrando na Calçada de Dom Gastão, a antiga Quinta Leite de Sousa, também do século XVII, foi depois transformada na operária Vila Maria Luísa e, já neste século, o seu edifício principal passou a ser ocupado pelo Eka Palace, um centro de artes.
E, com mais um pulinho, estamos já na Rua de Xabregas. Mais uma vez, não se sabe com certeza a origem deste topónimo. Mas conta-se uma estória curiosa a ele associada: as lavadeiras que paravam numa das muitas fontes da zona eram muito dadas a guerrear entre si, o que levava a que lhes atirassem muitas vezes a expressão “leixa bregas!”, ou seja, “deixa brigas”. De “leixa bregas” a Enxobregas e, depois, a Xabregas não custa acreditar no caminho. Embora, diga-se, talvez possa fazer mais sentido buscar a origem do seu nome no rio ali mesmo ao pé, onde se praticava o modo de pescar da “arte xávega”, sendo a derivação do topónimo semelhante: Exabregas ou Enxobregas.

Por aqui fica o Palácio de Xabregas ou dos Marqueses de Olhão (ou dos Melo e Cunha), longo na sua fachada simples de 14 janelas, onde encimando uma delas se veem as armas dos Cunhas. Foi construído no século XVI para residência do fidalgo navegador Tristão da Cunha, o primeiro vice-rei da Índia e quem deu o nome ao arquipélago do Oceano Atlântico sul. Propriedade da mesma família desde a sua origem, aqui se conspirou para levar Portugal à Restauração, em 1640. O edifício resistiu ao terramoto, segue conservado, foi classificado como Monumento Nacional e hoje está disponível para acolher eventos.

A cem metros fica o Convento de São Francisco de Xabregas (ou Convento de Santa Maria de Jesus). Construído no século XV, antes terá aqui existido um paço real. Na época tínhamos o Tejo à sua porta. Era a praia de Xabregas, conhecida como a Praia da Marabana, a qual manteve o seu extenso areal até 1939, data das obras do porto de Lisboa e abertura da Avenida Infante Dom Henrique, junto ao rio, que levou ao adeus à praia. Totalmente destruído pelo Terramoto, o Convento foi reconstruído e, depois da extinção das ordens religiosas, foi o primeiro a ser reconvertido em fábrica, logo em 1838. Foi, então, o lugar da Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense, depois fábrica de Tabacos Lisbonense e hoje Teatro Ibérico e IEFP.

Do outro lado da rua, praticamente à sua frente, um apontamento dos nossos dias, materializado no pátio do atelier do artista Bordalo II.
Atravessando o largo onde fica a Ponte Ferroviária de Xabregas com os seus característicos arcos em pedra, entramos na Rua da Madre de Deus. Aqui temos, desde logo, o Palácio dos Marqueses de Nisa. Fundado em 1543 pelo segundo conde da Vidigueira, filho de Vasco da Gama, mais tarde a família receberia o título de Marqueses de Nisa. A sua estrutura já não tem nada a ver com a original e hoje o edifício é propriedade da Misericórdia de Lisboa, onde funciona uma dependência da Casa Pia.

Paredes meias encontramos aquele que é o mais visitado dos conventos da zona: o Convento da Madre de Deus, hoje Museu Nacional do Azulejo. Foi D. Leonor de Lencastre, mulher do rei D. João II, quem fundou as Misericórdias e este Convento em 1509. Já viúva, após a morte do filho retirou-se para aqui e viveu entre as freiras clarissas (o conjunto do Convento da Madre Deus, do hoje Asilo D. Maria Pia e do Palácio Marqueses de Nisa formava, então, o Paço de Enxobregas). Na fachada do edifício, destaque imediato para o seu portal manuelino encimado pelas armas de D. João II e D. Leonor, à esquerda com a figura do pelicano, alimentando os filhotes, e à direita a divisa da rainha com uma rede de camaroeiro, em memória do trágico acidente que vitimou seu filho. O Convento foi sendo objecto de ampliações e restauros vários e em 1965 surge o projecto de criação de um museu do azulejo, concretizado em 1980. E é por isso que este é o Convento que mais facilmente podemos visitar.



A sua colecção de azulejos é deliciosa, com exemplares desde a sua origem até aos dias de hoje, mas com esta visita ficamos a conhecer também os seus claustros e a igreja, uma conjugação belíssima de painéis de azulejo azul com o dourado da talha. Riquíssimo. No último piso, uma vista panorâmica de Lisboa muito especial: um mega painel de azulejo da cidade pré-terramoto, abarcando desde o Convento da Madre de Deus até à Cruz Quebrada.
E, por fim, mas já não em Xabregas ou Beato, eis o Convento de Santos-o-Novo, na Calçada da Cruz de Pedra, em direcção a Santa Apolónia. À semelhança do edifício do primeiro convento deste nosso texto, o Convento de Chelas, também por ele passamos e senti-mo-lo pouco apelativo na sua arquitectura monolítica. Construído no século XVII, o antigo convento das Comendadoras da Ordem de Santiago passa, pois, despercebido, ali junto à linha do comboio. Acontece que estes edifícios escondem muitas histórias e muitos segredos no seu interior. No caso do Convento de Santos-o-Novo, um dos mais fantásticos claustros, diz-se que o maior em área coberta da Península Ibérica.

Foi à boleia da 1ª edição do Open Conventos, no ano passado, que pude visitar este edifício que hoje acolhe quer um lar dos Recolhimentos da Capital quer uma residência estudantil do Iscte. Esta iniciativa tinha como objectivo não apenas dar a conhecer vários conventos espalhados um pouco por toda a Lisboa, mas também fazer pensar e confrontar-nos com o futuro destes espaços. Como mantê-los, como dignificá-los, como legá-los às gerações que hão de vir? Já vimos que após a extinção das ordens religiosas, em 1834, muitos e diferentes usos lhes foram dados: hospitais, fábricas, lares. Hoje temos pudor em transformá-los em hotéis, urbanizações, espaços de empreendedorismo. Se está certo ou errado, daqui a umas décadas veremos, mas que a face de Lisboa continuará a mudar, aí isso continuará.
É a zona de Lisboa onde vivi toda a vida e sinto que tem muito para ainda dar à cidade. Começa a ser mais descoberta e neste artigo está um belíssimo trabalho nesse sentido! Parabéns!
Infelizmente, muito deste património tem sido esquecido e deixado ao abandono, tal como se percebe pelo avançado estado de degradação de alguns edíficios. O Convento da Madre Deus é uma preciosidade.
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