Olhão e Culatra

Olhão está localizada entre Faro e Tavira, mas não é apenas mais uma cidade algarvia. Igualmente plantada à beira da Ria Formosa e igualmente com um passado romano e mouro (embora este último já não visível), tem um carisma genuíno e muito próprio. Como nos dizia um olhanense, pode não ser tão bonita como Tavira, mas depois de dois dias os turistas cansam-se da beleza da vizinha e fogem para Olhão em busca do castiço e autêntico.

Dizíamos que nos dias de hoje não se vêem vestígios deixados pelos mouros, mas curiosamente são as cidades do norte de África que nos vêm à lembrança quando percorrermos as ruas de Olhão – Raul Brandão escreveu que só lhe faltavam os “esguios minaretes”. O seu traçado confuso, feito de ruas que não se sabe muito bem para onde confluem, becos que surgem de surpresa e, sobretudo, edifícios cúbicos com açoteias (terraços-miradouro) fazem-nos crer que estamos numa cidade com influência moura. Na verdade, este desenho da urbe é muito posterior à ocupação muçulmana e foi projectado já por nós, portugueses-olhanenses, no século XIX, influenciados pelas muitas viagens comerciais a Marrocos.

O nome “olhão” vem de um grande olho de água que se encontrava algures no que é hoje território olhanense. Apesar da ocupação humana desde há muitos séculos, terá sido no século XVI que aqui se instalou uma comunidade de pescadores vindos da vizinha Faro, atraídos pela abundante pesca desta parte da Ria. Na origem da povoação esteve, desde o início, gente humilde e as suas habitações eram cabanas de madeira e palha. Os de Faro recusaram até quando puderam construções de alvenaria na vizinha Olhão, e a primeira construção destas apenas foi autorizada em 1715. Esta gente humilde do mar, apartada do poder político, nem por isso deixou de pugnar pelos seus e pela sua terra, e em 1771 ganhou a construção do Compromisso Marítimo, edifício onde puderam passar a tratar de diversos serviços sem necessidade de se deslocarem a Faro. Ainda hoje se lê na fachada do entretanto tornado Museu Municipal de Olhão: “Esta obra foi feita à custa dos mareantes da Nobre Casa do Corpo Santo deste lugar de Olhão, em tempo do Felicíssimo Reinado do Fidelíssimo Rei Senhor D. José, o Primeiro, que Deus guarde, sendo Juiz da mesma Casa, António de Gouveia, no ano de 1771″.

A fibra dos seus cidadãos viu-se ainda num outro episódio da história de Portugal. Aquando das Invasões Francesas fizeram frente aos invasores e conseguiram expulsá-los do Algarve. Um grupo de destemidos olhanenses resolveu, então, meter-se ao mar numa pequena embarcação atravessando o Atlântico com o objectivo de dar a boa nova ao rei D. João VI (que havia fugido para o Brasil). O rei, grato, elevou o lugar de aldeia a vila e atribuiu-lhe uma nova designação, a de Vila da Restauração de Olhão. Uma réplica do caíque Bom Sucesso aí está na frente ribeirinha da hoje cidade para atestar o feito.

É por aqui que encontramos um dos lugares obrigatórios de Olhão, o seu Mercado Municipal, na verdade dois inconfundíveis edifícios lado a lado que se acredita terem sido projectados por discípulo de Gustave Eiffel. No interior a azáfama dos vendedores é vibrante e as bancas de produtos um espectáculo à parte. O peixe, sempre ele, é a estrela da companhia. Bom para se olhar e bom para se saborear. São inúmeros os restaurantes e tascas – na avenida marginal ou num dos tais becos – onde se pode comer um peixe inesquecível, como aquele atum braseado que pude provar e aprovar. E Olhão é ainda conhecida pela sua indústria conserveira – em 1919 eram cerca de 80 as fábricas -, entrada em decadência no final do século XX. Não é, pois, de estranhar que existam tantos edifícios em ruína. No entanto, também aqui se vê a raça do olhanense. Muitos vêm sendo restaurados para dar lugar a alojamentos turísticos recuperados e decorados com bom gosto; outros foram tomados pelos artistas de rua, dando-lhes um novo rosto através da pintura irrequieta.

Ou seja, a popular Olhão a todos acolhe e talvez por isso seja um dos lugares do Algarve que mais atenção e procura têm tido por parte de turistas inconformados e esclarecidos. Não surpreende, pois, que um festival como o FICLO — Festival Internacional de Cinema e Literatura de Olhão tenha lugar na cidade. E claro que aproveitámos para voltar ao cinema nesta era Covid-19, assistindo a uma das sessões ao ar livre no República 14, um dos espaços culturais de Olhão.

E porque estamos no Algarve, a praia não pode faltar. No Porto de Recreio várias opções de passeios de barco pela Ria Formosa nos tentam. Mas nenhuma é mais típica da alma olhanense do que apanhar o barco público até à ilha da Culatra ou da Armona. Escolhemos a Culatra, uma das 5 ilhas (mais duas penínsulas) barreira que separam o mar da ria. A viagem dura cerca de tranquila meia-hora onde nos dedicamos em exclusivo a apreciar Olhão a ficar para trás emoldurada pela Serra do Caldeirão e, depois, a assistir aos barquinhos a passarem por entre canais que contornam os bancos de areia e as áreas de sapal. Descobrimos até um olhanense aqui e ali a trabalhar numa destas pequeníssimas ilhas naturais.

A chegada à Culatra é movimentada, com muitos barcos estacionados no seu porto. Descemos e logo vemos as casas assentes na areia, até uma capelinha. Esta ilha é ainda hoje lugar de pescadores, embora muitos outros se lhes tenham entretanto juntado. São cerca de 1000 os seus habitantes com infra-estrutras à sua disposição como escola, centro social e correios. E muitos e afamados restaurantes onde se come o bom do peixe da Ria e arredores. O ambiente parece, no entanto, um de férias infinitas.

Os caminhos já não são exclusivamente de areia, muitos foram traçados com lajes de cimento, mas as casas simples com terraços e até pequenos jardins dão uma imagem de veraneio. Entramos pela ria e depois de atravessarmos a povoação seguimos por um passadiço de madeira por cerca de 500m totalmente envolvidos por um cordão dunar e, zás, estamos no mar. Esta é uma zona de Parque Natural e há que respeitar as regras para que a biodiversidade dos ecossistemas não seja colocada em causa nem perturbada. Por exemplo, não caminhar nas dunas e respeitar os sinais de não passagem, uma vez que muitos dos lugares podem ser de nidificação de aves e corremos o risco de pisar e destruir os ninhos mesmo sem o perceber.

Após o final do passadiço e com o Atlântico completamente aberto diante de nós, duas opções se colocam: tomar a esquerda em direcção à Praia da Culatra ou tomar a direita em direcção à Praia do Farol. Optámos por esta última e caminhámos pela areia por cerca de 3 kms completamente desertos de gente, apenas com a companhia de muitas aves que se divertiam entre a areia e a água do mar.

O Farol é o farol do Cabo de Santa Maria, mas é também uma (outra) povoação piscatória num dos extremos da ilha da Culatra. Igualmente castiça e popular, indisfarçavelmente Algarve, não lhe faltando sequer as típicas chaminés. Pelo meio da ilha há ainda outra povoação, Hangares, mas essa já só a percebemos ao longe, na volta da viagem de barco para Olhão, completamente saciados de tanta ria e mar.

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