Dos trilhos pedestres oficiais pela ilha das Flores, o PR4 – FLO até à Fajã de Lopo Vaz é o mais curto. São 3,5 kms de descida e subida pelo mesmo caminho, um pouco mais se resolvermos explorar a fajã até onde nos é permitido. À Fajã de Lopo Vaz vamos pela natureza, pela história e pela liberdade do isolamento.

Com início no belo Parque de Merendas e Miradouro acima da fajã, este lugar na costa sul da ilha foi um dos primeiros a ser povoado e chegou a ser um dos núcleos populacionais mais importantes no princípio da colonização das Flores, no início do século XVI. Lopo Vaz foi um colono povoador que aqui se estabeleceu com alguns parentes e mais umas famílias. A fajã, está visto, leva o seu nome (diga-se, por curiosidade, que a irmã de Lopo, Maria Vaz, dá nome a um ilhéu na costa norte).

Este caminho que agora usamos para chegar até à fértil língua de terra protegida por uma enorme falésia – aproximadamente 400 metros que se erguem de forma abrupta – terá sido aberto pelo próprio Lopo Vaz, acreditando-se que seja a construção humana mais antiga da ilha. Já Gaspar Frutuoso, o cronista seiscentista das ilhas, havia deixado escrito na sua obra “Saudades da Terra” que entre a fajã e o mar “se estende muita penedia, e tem por cima a mesma rocha um caminho em voltas, por onde descem bois abaixo” – o mesmo caminho usado pelas pessoas era também usado pelos animais. Ainda hoje bem definido, não tinha qualquer deslizamento de terras quando o percorremos, embora estes aconteçam amiúde por aqui. A fajã que começamos por avistar mais ao longe desde o miradouro, por exemplo, é a da Ponta da Rocha Alta e foi formada apenas em 1980, em consequência de uma quebrada da falésia.


Na ida vamos sempre a descer, um caminho em piso de calçada ou de terra e com escadarias, fácil em termos técnicos e físicos (na volta, a subida não têm igualmente dificuldade técnica, mas é um pouco cansativa). Iremos encontrar algumas pequenas quedas de água, como se de bicas se tratassem, mas é uma cruz que começa por assinalar o caminho e, pouco mais adiante, um pequeno altar com uma colecção de imagens da Virgem escavado na negra parede rochosa não nos deixa dúvidas da religiosidade dos nossos ancestrais e contemporâneos. Ou será, talvez, uma forma de garantir a protecção daqueles que insistem em descer a este pedaço de terra histórico, hoje, ao invés de agricultores, apenas amantes da natureza, veraneantes ou simples curiosos.



Há muito despovoada, a Fajã de Lopo Vaz foi escolhida por ser terra de muitas fontes de água e propícia à cultura do trigo e pastel, que aqui “amadurece primeiro que em nenhuma parte da ilha”, segundo o mesmo Frutuoso. Valia, assim, a pena o esforço de a alcançar. Hoje não vemos nem trigo nem pastel, embora se diga que ainda por lá está a pedra de moer – que não descobrimos – para a moagem do pastel.



O que vemos, sim, ao fim de menos de 30 minutos de descida é um lugar imenso, de uma natureza transbordante, quase por completo apartado do mundo. Não nos cruzámos com absolutamente ninguém e, isso, tornou a fajã um lugar ainda mais especial, um daqueles onde é fácil nos sentirmos quase como os primeiros exploradores. Há umas poucas casas – e em menor número ainda casas conservadas, provavelmente de veraneio -, uma praia grande de areia preta e calhaus e um caminho que atravessa uma série de culturas, algumas delas exuberantes. É o microclima desta fajã, conhecida por ser o lugar mais quente da ilha das Flores, o grande responsável por estas culturas: inhame, bananas, figos, uvas, araçás e ananás. Ananás vermelho, a contrastar com o verde dominante e a deixar-nos perplexas: há ananás vermelho?

O padre e historiador florentino José António Camões dizia no início do século XIX que aqui produzia-se “todo o género de comestíveis, tem uma particularidade notável, que é ficarem as sementes de um ano para o outro em caseiras de abóbora, bogango, melão, melancia, cabaça, etc, e no ano seguinte, sem nova cultura, produzem como as que tivessem sido cultivadas”. Hoje, tudo parece crescer sozinho, solto, sem limites.


Seguimos adiante, em direcção à nova quebrada, mesmo quando o trilho oficial termina e deixa de ser óbvio o caminho. Aventureiras q.b., não passámos de tentar o equilíbrio sobre alguns muros de pedra e o espreitar de umas casas também de pedra abandonadas. A vista para a continuação da praia da Fajã de Lopo Vaz e a recente Quebrada da Rocha Alta é magnífica, apenas contrariada pelo capacete de nuvens que não deixaram perceber por inteiro a magnitude da falésia, uma das maiores de todos os Açores.


De volta ao extenso areal da praia, impunha-se um mergulho. Falésia poderosa nas costas, Atlântico que só pára no Brasil em frente, ninguém à esquerda, ninguém à direita, estamos sozinhas na ilha, é só tirar a roupa e nuas em pêlo entrar naquele mar entre a Europa e a América. Dizem que pela fajã haverá também lapas e caranguejos; não os vimos. Mas as belas mas assustadoras caravelas portuguesas andavam por lá e bem a tempo demos por elas. O mergulho acabou por ser trocado por mais tempo sentadas num dos calhaus, ali, no meio de uma natureza bruta e imponente, pouco acolhedora mas de uma incrível persuasão.
Adoro essa fajã!
A primeira vez que lá fui foi há uns trinta anos e os meus filhos ainda eram pequenos. Um foi sempre às cavalitas do pai e a irmã presa a mim por uma corda, já que nessa altura não havia proteções laterais e a descida, especialmente, era um pouco perigosa.
Em ambas as vezes tomei inesquecíveis banhos…no calhau, mas sempre com água excelente. Nunca esquecerei esse local…até porque provavelmente já lá não voltarei mais. É um local que se entranhou…
Em ambas as vezes vimos também caravelas portuguesas dispersas.
Obrigada por me levar a tão boas memórias!
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A Fajã continua selvagem, mas pelos vistos não tanto como há décadas. Deve mesmo ter sido uma experiência incrível, daquelas que se guardam para sempre, e completa: a nós ficou a faltar o mergulho no calhau e na água quente 🙂
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