A calçada portuguesa é inconfundível, uma marca que irradiou de Lisboa para todo o país e depois para o mundo lusófono, tornando-se património comum e parte da nossa identidade. Há quem não goste dela, mas com uns ténis não escorregadios nos meus pés não só não tenho razões de queixa como é um prazer apreciar a beleza e geometria dos seus desenhos espalhados pelas ruas da cidade de Lisboa.

Esta é uma forma de decoração do pavimento dos espaços públicos, com passeios e praças à cabeça, que é uma verdadeira obra de arte. A sua singularidade e marca identitária levam a que a candidatura da calçada portuguesa a património da humanidade esteja a ser ponderada para entrega junto da Unesco.

A sua origem estará nos mosaicos que os romanos usavam para pavimentação e decoração dos espaços públicos das suas cidades. Bem mais tarde, conta-se que o primeiro calcetamento de uma rua de Lisboa terá tido lugar em 1515 e por culpa de um rinoceronte. Era então rei D. Manuel e a expansão portuguesa estava no auge. Da Índia veio um exemplar daquele animal, de nome Ganga, e para que este não sujasse de lama os convidados para o cortejo da festa de aniversário do rei decidiu-se calcetar de granito a então Rua Nova dos Mercadores, avenida central da Lisboa quinhentista. Como curiosidade adicional diga-se que este foi o rinoceronte que foi depois oferecido ao Papa mas que morreu entretanto e acabou embalsamado em Nuremberga, terra de Albrecht Dürer, o artista que haveria de imortalizar o Ganga numa célebre xilogravura.

Todavia, a primeira vez que se tem registo de a calçada portuguesa tal como a conhecemos ter sido usada em Lisboa foi em 1842, quando o Governador do Castelo de São Jorge, então transformado em quartel, mandou pavimentar com pedra alguns dos seus espaços. Agradou tanto que anos mais tarde o Rossio seria pavimentado através do uso da mesma técnica e logo depois outras praças da capital se seguiriam na adopção desta estética. Esta calçada não se ficou por aqui e rapidamente viajaria por todo o país e mundo lusófono, com o exemplo maior da decoração ondulada da Avenida Atlântica, em Copacabana, Rio de Janeiro.

Inicialmente usou-se a pedra basalto, mas hoje é a de calcário a mais utilizada, por o seu corte e aplicação serem mais fáceis. No entanto, com a polémica que se tem gerado sobretudo nos últimos anos, alegando os seus detratores ser a calçada perigosa por escorregadia e atreita a buracos, a Câmara Municipal de Lisboa têm vindo a optar pelo uso da pedra lioz e cimento branco. A este propósito, há quem defenda, porém, que a calçada portuguesa é um pavimento natural que contribui para a permeabilidade dos solos e contribui para a luminosidade pela qual Lisboa é conhecida.

As cores usadas na calçada portuguesa são maioritariamente o preto e o branco, embora se observem outras cores em menor escala. Os motivos são diversos, mas talvez as famosas ondas de Copacabana – que não foi pioneira – seja a decoração mais comum. E é precisamente a decoração do pavimento e sua imensa gama de motivos que mais chama a atenção e faz da calçada portuguesa uma arte de uma estética ímpar. A arte está tanto no processo da sua aplicação como no seu resultado. Para isso existe uma escola de calceteiros, criada pela Câmara Municipal de Lisboa em 1986, a funcionar na Quinta Conde dos Arcos, nos Olivais, onde se aprende, desenvolve e procura legar às gerações vindouras as técnicas associadas a este modo de criar cidade.

José Cardoso Pires, no seu Lisboa Livro de Bordo, apodou estes artistas, os calceteiros, de “mestres agachados à flor da pedra”, uns “escribas acocorados” que “revestem o corpo da cidade com tatuagens impressas a basalto”.

Já Cesário Verde, no seu poema “Cristalizações”, havia escrito:
“Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros, / Vibra uma imensa claridade crua. / De cócoras, em linha os calceteiros, / Com lentidão, terrosos e grosseiros, / Calçam de lado a lado a longa rua”

Cerca de um século e meio depois, o jornal americano The New York Times haveria de destacar a arte da calçada portuguesa referindo-se-lhe como “Em Lisboa, um tapete de pedra sob os seus pés”. Traçando a história e lugares deste património, escreve sobre a imaginação dos calceteiros, mas também da modernidade que está associada a esta arte, ilustrando como exemplo o trabalho conjunto destes com Vhils na calçada com a imagem de Amália Rodrigues em Alfama.

E a verdade é que se as ondas e os ziguezagues começaram por ser o padrão mais usado, numa geometria e simetria perfeitas, hoje há um sem fim de desenhos. Basta caminhar a olhar para o chão, descobrindo imagens surpreendentes e até recados deixados pelos calceteiros nas suas obras de arte.
E a cidade de Lisboa homenageia esses trabalhadores da pedra com um monumento colocado nos Restauradores
GostarGostar
(…) Mais uma merecida homenagem à arte de pavimentar o passeio público em Lisboa.
GostarGostar