O percurso pedestre circular “De Santa Clara à Barragem” é parte da rede da Rota Vicentina. Durante 10 quilómetros, com início e final na aldeia de Santa Clara-a-Velha, concelho de Odemira, permite-nos caminhar por uma zona de interior de serra, mas onde o elemento água é dominante – água do rio e água da barragem.

Só a localização de Santa Clara já é suficiente para entusiasmar o viajante que passeia feliz: perdida no meio do verde, é um recanto isolado da civilização. A aldeia é feita de casas brancas e o destaque que procura romper a monotonia que não se sente é o edifício da igreja, com listas azuis. A Igreja de Santa Clara de Assis, logo à entrada da povoação, vem do século XVI, uma época em que a região estava entregue à Ordem de Santiago de Espada.

Caminhamos pelas ruinhas, com tempo para abastecer de mel e / ou aguardente de medronho, e logo vamos ter à beira do Mira, aqui conhecido simplesmente por “ribeira”. É Inverno, mas a tranquilidade dada pela água do rio dá vontade de um mergulho, quanto mais não seja para ver o seu reflexo perfeito espalhar-se. Bom, a verdade é que podemos sempre pegar numa pedrinha e tentá-lo, mas deixamos para o Verão a experiência de provarmos a água desta praia fluvial.



A primeira parte deste percurso é toda feita ao longo do Mira, numas vezes silencioso e noutras, mais raras, a fazer questão de mostrar que está presente. A vegetação é típica das frentes ribeirinhas, com salgueiros, amieiros, freixos, mimosas e choupos. A dado momento, quase escondida no meio da vegetação, surge a Ponte D. Maria. Em ruína, já não liga as duas margens do rio, mas segue formosa com alguns dos seus arcos resistentes em pedra. É também conhecida como “ponte romana”, não apenas por seguir o modelo destas construções mas também por se situar numa antiga via romana. Talvez tenha existido aqui uma outra ponte no tempo dos romanos, mas a verdade é que a que temos diante nós, com os arcos e tabuleiro incompleto, é de construção bem mais tardia, tendo sido começada a construir durante o reinado de D. Maria e ficado concluída em 1822.



Estamos cada vez mais afastados da aldeia, apenas com a natureza por companhia. Mas eis que surge, isolada, uma habitação de um piso e tipicamente branca, com uma chaminé engraçada como seu quase exclusivo adorno. Os terrenos são férteis, sobretudo bons para hortas e pomares, e se não há aqui mais habitações será pelo tão longe que estamos de (quase) tudo. Essa fertilidade é garantida pelo rio e a sua água era melhor aproveitada por estruturas como a que vemos no caminho e nesta foto, de captação e distribuição de água.


Hoje o engenho é outro: um pouco mais adiante começamos a perceber uma elevação mais contínua do terreno, já não apenas um cabeço com vegetação mas também uma extensa parede em pedra. É a estrutura da barragem de Santa a Clara e o cabeço natural vizinho tem a pousada a encimá-lo.


Uns painéis explicativos vão dando a conhecer como funciona a captação, transporte e armazenamento da água do rio Mira para a Barragem, mas só quando subimos e damos de caras com a imensa alfubeira é que começamos a perceber a dimensão da obra e do lugar. O enorme e bruto paredão – com 83 metros de altura – que vínhamos vendo estender-se diante nós dá agora lugar a um belo espelho de água que, não deixando de ser o rio Mira, transforma-se num ápice em lago.

A obra de construção da Barragem de Santa Clara teve início em 1963 e foi inaugurada em 1969, incluída na primeira fase do Plano de Rega do Alentejo. Com uma área de 1986 hectares, beneficia 12000 hectares entre a charneca de Odemira e a ribeira de Seixe, ou seja, uma região que vai desde Vila Nova de Milfontes ao Rogil, já no Algarve. A água alimentada pelo rio Mira e armazenada em Santa Clara percorre 84,9 quilómetros de canais, 50,4 quilómetros de distribuidores e 309,6 quilómetros de regadeiras. Com estes números, não admira que seja um das maiores albufeiras da Europa. Outra curiosidade, sendo uma obra do Estado Novo – e à semelhança do que acontece com outras barragens que beneficiaram directamente outras povoações alentejanas – vê-se uma rara coluna de homenagem e agradecimento a uma decisão que, se não evitou a desertificação interior, permitiu a criação de outras condições de vida, sobrevivência e aproveitamento das terras.


O lago artificial criado pela Barragem está decorado com diversos cabeços cobertos de vegetação plantados à beira da água, alguns formando ilhas, e é cheio de reentrâncias e possibilidades de navegação. Há aqui uma praia fluvial, com todas as comodidades esperadas, mas de imediato se percebe que a piada estará em nadar ou velejar até uma das ilhas ou até terra firme na margem contrária. É um lugar de uma pacatez e beleza simples, uma natureza pura que nem a imagem da torre de manobra da comporta perturba.

Sendo Inverno, não há mergulho, apenas uma pausa para uma merenda. E continuamos caminho, agora de volta à aldeia de Santa Clara. Desta vez fazê-mo-lo durante uns largos metros junto à beira de água, por entre a floresta ribeirinha, apreciando os contornos da água a envolver a terra, tendo como resultado uma bela paisagem. Na zona da barragem estamos a 127 metros de altitude e deixando-a para trás vamos subir bem mais uns 100 metros, embora por pouco tempo. Distraímo-nos com uns cogumelos e no fim da subida admiramos uma vez mais a barragem, agora cada vez mais ao longe.


As vistas para o lado contrário são ainda mais bonitas. Ao descermos para a aldeia vemos ao fundo uma paisagem ondulante pelos montes que se sucedem. É a Serra de Monchique. Mais perto, umas habitações isoladas vão avisando que a aldeia chegará em breve. E assim acontece. Santa Clara-a-Velha aparece-nos protegida por montes e com uns relvados quase imaculados por companhia, num domínio do verde. No meio do casario, destaca-se novamente a torre da igreja e assim sabemos que voltámos à base.
