Ilha de Santa Maria – Parte 2

E, de repente, o dia amanheceu claro, voltámos a passar para o outro lado da ilha e um mundo completamente diferente apresentou-se. Como se de uma outra ilha se tratasse, a terra é agora mais acidentada, mais alta e mais rica em vegetação. Não há dúvidas, estamos nos Açores.

Esta é a maior surpresa da ilha de Santa Maria e um dos seus encantos. Há uma clara linha divisória entre a sua parte ocidental e oriental, praticamente a meio da ilha, com o Pico Alto como símbolo desta mudança. Já tínhamos passado pelo miradouro dos Picos sem perceber qualquer paisagem diante nós, mas com céu aberto tudo se revelou.

Já no caso da Reserva Florestal de Recreio das Fontinhas, o clima que faz a cada momento é indiferente, uma vez que o sítio é naturalmente tão fechado pela densa vegetação e com uma humidade tal durante todo o ano que o seu ambiente é até melhor fruído na penumbra, com escassos raios de sol. A alameda de criptomérias é impressionante e inesquecível. Os diversos exemplares de fetos, por sua vez, são um mimo. Que maravilha.

Subamos, então, até ao Pico Alto, o maior de Santa Maria, a 587 metros de altitude. Em dias de céu pouco nublado de quase todos os cantos da ilha se vê a cabeça redonda da estrutura do radar de transmissões radiofónicas, aí instalado.

Central, do topo deste pico vulcânico avista-se toda a ilha, uma panorâmica soberba. E o Pico Alto é também uma área protegida, com a exuberante vegetação Laurissilva a palpitar. A sua geografia e clima especiais permitem que várias espécies possam desenvolver-se, fazendo desta uma das zonas dos Açores com maior diversidade biológica. Um trilho circular de cerca de 6 kms, o PRC2 SMA, sai daqui e há de ser uma beleza (desta vez não fizemos qualquer percurso pedestre pela ilha), quer pelo cenário de floresta quer de mar.

E o Pico Alto é também um marco, desta vez infeliz, por ter sido nele que aconteceu o maior desastre aéreo em território português. Um monumento aqui instalado recorda e homenageia as 144 pessoas que no dia 8 de Fevereiro de 1989 morreram no voo saído de Itália com destino à República Dominicana.

Santa Bárbara e Santo Espírito são povoações interiores e tipicamente rurais. Não fossem os montes ondulantes e verdejantes e diríamos que estaríamos no Alentejo ou no Algarve, a ver pelas casas listadas de cores vivas e suas chaminés. É uma enorme marca na paisagem que serve até hoje de testemunho da pioneira povoação da ilha por parte de gente vinda destas regiões do continente. O miradouro da Pedra Rija dá-nos uma boa perspectiva sobre a primeira daquelas povoações.

Santo Espírito é mais uma paragem obrigatória. Primeiro na Cooperativa de Artesanato de Santa Maria, para conhecer, comprar e provar os seus produtos típicos, como mantas, pão e doces. E, depois, para admirar a incrível fachada da Igreja de Nossa Senhora da Purificação, um momento alto do barroco açoriano. É o negro da pedra vulcânica sobre o branco que sobressai primeiro ao olhar, mas mais perto realizamos como é precioso o trabalho decorativo na cantaria do pórtico da igreja. Não saímos da vila sem visitar o Museu de Santa Maria. Espaço museológico essencialmente etnográfico, recria as várias divisões de uma casa antiga mariense, para o que foram recolhidos objectos do dia-a-dia e mobiliário junto da comunidade. E dá um enfoque particular às peças de cerâmica produzidas localmente, dando-nos a conhecer que Santa Maria foi um importante centro de olaria no contexto açoriano, aproveitando o barro que desde tempos antigos aí se extraiu.

Não muito longe há um lugar onde a acção humana moldou a paisagem de uma forma surpreendente. O Poço da Pedreira / Pico Vermelho é, como o nome indica, uma antiga pedreira de coloração avermelhada. Neste cone vulcânico de escórias basálticas foram extraídos grandes blocos de pedra usados na construção de muitas casas da ilha, o que acabou por resultar numa enorme parede vertical de cor vermelha. No século passado passou a usar-se o cimento e o ferro e esta actividade extractiva terminou, formando-se entretanto um lago na base da dita parede. O sítio é irreal, está visto, mas para além deste cenário peculiar podemos ainda subir ao topo da rocha e obter não só uma visão ainda mais exacta do Poço da Pedreira como também de toda a paisagem envolvente.

A Ponta do Castelo é a extremidade mais a sudeste da ilha e neste lugar condensam-se uma série de interesses caros à ilha. Desde logo, ao nível da paisagem é um promontório rochoso com uns 200 metros de altura que se levanta a pique sobre o mar. No cimo da arriba está instalado o Farol de Goncalo Velho, luz quase centenária que guia os navegantes entre os Estados Unidos da América e a Europa. Vêmo-los na perfeição, ao promontório e ao farol, desde a Vigia da Baleia, onde uns painéis informativos interpretam a actividade baleeira na ilha, parte da cultura do arquipélago. E algures lá em baixo, fica a jazida fóssil da Pedra-que-Pica, testemunho de uma época muitíssimo remota, com centenas de milhões de anos, que faz de Santa Maria um laboratório paleontológico de nível internacional. Mas voltemos a debruçar-nos na paisagem que o miradouro da Vigia da Baleia nos oferece. O promontório é belo na forma e percebem-se com clareza uns tufos verdes sobre as escoadas lávicas basálticas que lhe deram origem. Mais interessante, a sua vertente virada para a Baía da Maia está desenhada em quadrículas formadas por muros de pedra.

Este é um dos pontos altos de qualquer viagem por Santa Maria, as plantações de vinha dispostas em socalcos murados pela rocha basáltica, conhecidos por “quartéis” ou “currais”. Cultura tradicional, impressiona não só pela bonita paisagem que criou, mas também pelo esforço árduo que lhe esteve na origem. Para além do trabalho de levantamento e disposição das pedras até se formarem muros, de maneira a criar as condições para que a vinha pudesse ficar protegida e prosperar, as uvas eram transportadas em cestos de vimes aos ombros pela encosta declivosa até à baía. Foi assim ao longo de várias gerações, alimentado uma economia de sustento de várias famílias.

A Maia é uma zona de veraneio, com uma promenade aberta ao mar e uma encosta preenchida pelos currais logo ali nas costas. Na sua ponta norte fica a Cascata do Aveiro, um despenhadeiro de água que cai na vertical a uns 110 metros de altura.

À semelhança da Maia, também na Baía de São Lourenço se observa a mesma paisagem vitivinicola feita de socalcos e muros de pedra. No entanto, não são só os currais que fazem a delícia de todos nós numa visita a esta Baía. É definitivamente o lugar mais bonito da ilha de Santa Maria e um dos mais bonitos de todo o arquipélago dos Açores. Como a descreveu João de Melo, o escritor natural da ilha mais próxima, é um autêntico anfiteatro, “um imenso estádio verde sobre o azul olímpico do mar”.

A Baía de São Lourenço é linda, linda, linda. Qualquer ponto de vista na estrada que desce até junto do mar vai-nos deixando a salivar, uma ansiedade incontrolável por mergulhar naquela água azul super transparente. Dá para acreditar que este mar de Outubro possui água a 23° graus? Isto é mesmo Europa? Ah, que banho inesquecível nesta concha translúcida.

Mesmo com mar flat o ambiente junto à orla costeira é quase o de uma surf city. Como na Maia, nesta zona de veraneio as casinhas têm o mar à beira e os currais como logradouros encosta acima.

O Miradouro de São Lourenço, mais a sudeste e acima da Ponta Negra, dá-nos outra perspectiva da Baía, mas igualmente grandiosa. E desta vez temos o ilhéu do Romeiro mesmo ali ao pé, poderoso nos seus 92 metros de altura. É um lugar onde diversas espécies de aves marinhas se acostumaram a nidificar, sendo ainda mais um dos pontos da ilha ricos em icnofósseis e com a presença de escoadas lávicas submarinas.

Continuando nas vistas de pássaro sobre a Baía de São Lourenço, há que não perder o miradouro do Barranco, partindo daí perto o trilho da Fajãzinha, a principal forma de chegar à Baía até há não muito tempo.

Seguindo em direcção à costa norte, o pacato cenário de vacas a pastarem nos montes verdes com declives suaves é puro Açores. Mas tal não significa que esta costa seja tranquila, nada disso. As baías do Tagarete, Raposo e Cré – a tal onde Cristóvão Colombo não conseguiu ancorar – são lugares escarpados com arribas altas e abruptas e de difícil acesso, ideais para a nidificação de aves. No Norte, a Ermida de Nossa Senhora de Lurdes dá ares de uma falsa tranquilidade que aguarda que o céu se volte a por de mau génio. No entanto, deu-nos tempo para apreciar o ilhéu das Lagoinhas, quer ao longe quer mais de perto.

A passagem pelas Feiteiras completou este feliz passeio pela ilha de Santa Maria, provavelmente aquela que de todo o arquipélago possui mais contrastes na paisagem. A ilha de todas as cores, com montes verdes e vermelhos e praias de areia branca e negra. A ilha que consegue num curto espaço de território ser plana e árida e, logo a seguir, pôr-se com montes preenchidos por vegetação exuberante. A ilha com povoações na costa, mas também com a maioria delas espalhadas pelo interior. A ilha no meio do Atlântico com uma pitada de Alentejo e Algarve. A ilha dos promontórios e dos ilhéus, das aves marinhas de hoje e da vida marinha fossilizada há milhões de anos. A primeira das ilhas, a mãe dos Açores.

2 Comments Add yours

  1. Não conheço e tinha uma ideia bastante diferente desta ilha. Gostei muito das características e
    lugares referenciados.

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    1. Não há uma ilha açoreana que desiluda e todas nos surpreendem 🙂

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