“Isto que de longe era roxo e diáfano, violeta e rubro, conforme a luz do tempo, aparece agora, à medida que o barco se aproxima, negro e disforme, requeimado e negro, devorado por todo o fogo do Inferno. É um torresmo.”
Eis a ilha Pico, a terra a negro e cinzento que provocou angústia e medo a Raul Brandão.
Para a ilha do Pico tinha previsto chegar de barco a São Roque, para onde marcara alojamento, vinda do Faial. Mas cancelaram o barco para São Roque – porque sim – e mandaram-no para a Madalena.
Tinha previsto subir à montanha do Pico, a mais alta de Portugal. Mas estava um nevoeiro e chuva tal que nem a casa de abrigo me deixaram ver.
Tinha previsto sair ao mar para ver as baleias. Mas o mar estava tão mau que os barcos – e talvez as baleias – não ousavam sair.
Tinha, enfim, previsto deixar a ilha do Pico rumo à ilha de São Jorge num final de dia. Mas tudo o acima justificado adiou essa decisão para o dia seguinte.
Quer isto dizer que a experiência no Pico falhou?
Talvez não. Talvez dizer que se o clima nos Açores é um tópico, então a experiência no arquipélago não fica completa sem que o tópico se manifeste. Nunca vi chover tanto e nunca tinha vivido literalmente a expressão “vento que faz voar”. Em 3 dias na ilha, em nenhum momento as nuvens e o nevoeiro deixaram ver o Pico.
Mas se o negrume do Pico, feito de pedra de lava, pode assustar a princípio, logo ele seduz em reconhecimento ao trabalho hercúleo dos picarotos que moldaram a sua paisagem para melhor os servir. Paisagem esta que, merecidamente, foi distinguida pela Unesco como Património da Humanidade.
E se esse negrume da pedra está por toda a ilha, no seu centro é o verde dos tapetes dos montes, cabeços e cones vulcânicos que dominam a paisagem, juntamente com uns surpreendentes lagos.
Socorro-me novamente de Raul Brandão: “Esta ilha negra e disforme apoderou-se dos meus sentidos. Tudo o que a princípio me repelia, o negrume, o fogo que a devora, o mistério, tudo me seduz agora. O Pico é a mais bela, a mais extraordinária ilha dos Açores, duma beleza que só a ela lhe pertence, duma cor admirável e com um estranho poder de atração. É mais que uma ilha – é uma estatueta erguida até ao céu e moldada pelo fogo – é outro Adamastor como o do Cabo das Tormentas.”.
Se não fiz grande parte do que havia planeado na ilha do Pico e ainda assim a deixei com a alma plena, isso só pode significar que já encontrei a minha ilha no arquipélago dos Açores, certo?
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