O negrume do Pico conjugado com a habilidade e o engenho dos picarotos no aproveitamento dos elementos naturais levaram à criação de uma paisagem única, a Paisagem da Cultura da Vinha do Pico, distinguida pela Unesco como Património da Humanidade em 2004.
É surpreendente poder ver e perceber que a vinha pode ser plantada – e daí surgir bom vinho, sendo o verdelho o mais famoso da ilha – na lava tornada pedra na mais recente das ilha do arquipélago dos Açores. A pedra, que curiosamente não vemos na vizinha Faial, está por toda a ilha do Pico, mas é na costa entre o Lajido de Santa Luzia e a Candelária, ou seja, grande parte da costa noroeste e oeste, que se torna mais evidente a sua distribuição pelos infinitos muros. São tantos, mas tantos, estes muros que, diz-se, colocadas todas as suas pedras em fila, umas atrás das outras, dariam uma vez e meia a volta ao mundo, o que levou João de Melo, o escritor açoriano de Gente Feliz com Lágrimas, a falar numa “epopeia de pedra”.
Para quem quer saber mais sobre esta cultura, tradição e paisagem, dois pequenos museus há que nos fazem viajar no tempo e nos deixam directamente no presente: o Centro de Interpretação da Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico, no Lajido, e o Museu do Vinho, na Madalena.
Comecemos este passeio pelo Lajido de Santa Luzia, povoação plantada à beira mar. Para além da omnipresente e omnipotente pedra, eis dois outros elementos que costumam acompanhar as vinhas do Pico: povoações e mar (mas há-as também no interior da ilha e fora das povoações; acontece que a região distinguida pela Unesco é exclusivamente costeira e é no litoral que a maior exposição solar e baixa humidade resultam em microclimas mais favoráveis ao cultivo da vinha). No Lajido podemos conhecer uma pequena povoação feita de casas de pedra negra bem preservadas. Então, mas se a ilha é feita de pedra negra e as casas das povoações de pedra negra são feitas, qual é a piada da coisa? Pode o negrume seduzir? Pode pois. Acontece que por entre a pedra negra de basalto das casas, em quase todas elas encontramos elementos que lhes dão uma vivacidade única e as tornam verdadeiramente pitorescas. Seja um alpendre a vermelho, um caixilho da janela a azul, um portão a verde, o branco malhado no preto que as reveste ou até a decoração de um barco na fachada. Tudo isto no meio do, lá está, negrume da pedra, incluindo a beira mar feita de lava.
A presença da vinha no Pico virá já desde o século XV. A actividade desenrolava-se sobretudo entre a Primavera e o final do Verão. Partia-se pedra atrás de pedra até se conseguir abrir buracos na rocha para se plantar o bacelo. Para o desenvolvimento desta cultura, foram criados pequenos núcleos edificados em alguns pontos da costa onde existia acesso ao mar através de pequenos portos e rola pipas que permitiam o embarque do vinho para os barcos que o transportaria para fora da ilha (o vinho do Pico era exportado para os mercados regional, nacional e internacional). As rola pipas são as rampas que vemos ainda hoje na rocha de lava e serviam para ajudar no caminho das pipas, que seguiam rolando até ao mar.
Uma ou duas casas senhoriais e uma ermida chegavam para compor a povoação, e o Lajido não foge à regra e ainda hoje vemos a sua igrejinha. E mais uns quantos armazéns, adegas, lagares, alambiques e poços de maré – nesta zona da ilha não existem ribeiras ou lagoas e eram os poços de maré a forma de abastecer as populações de água potável e de levar a água às vinhas. À sua volta, os campos de vinha e também de figueira. Os campos de vinha envolvidos em muros que desenham quadrados ou rectângulos, colados uns aos outros, e os campos de figueira em muros circulares (com bons exemplos ainda hoje no Cais do Mourato). Estes são os famosos currais, que protegem as vinhas e figueiras dos ventos fortes e do rocio do mar, ficando o solo basáltico aquecido pelo sol. Com isso conseguem-se uvas com elevada riqueza em açúcares, dando origem a um vinho licoroso de características únicas.
Inicialmente, as vinhas eram sobretudo propriedade de habitantes do Faial e das ordens religiosas presentes na ilha, mas sempre trabalhadas pelos picarotos. Só com as pragas da filoxera e do oídio em meados do século XIX, com o consequente declínio da actividade vinícola e desvalorização das grandes propriedades, bem como o fracionamento dos latifúndios, foram as parcelas resultantes dessa divisão vendidas aos locais, e os picarotos puderam, assim, ser donos das terras que sempre trabalharam.
Na Criação Velha, costa oeste já para lá da Madalena, veem-se os currais na perfeição, os tais quadrados ou rectângulos de pedra que protegem a vinha dos elementos. Esta é a melhor imagem da originalidade da engenhosa arquitectura popular da vinha do Pico, exemplo maior de adaptação do Homem às difíceis condições que a Natureza lhe oferece. São parcelas e mais parcelas divididas por muros de pedra que correm para o mar e apenas interrompidas por canadas de terra ocre que servem de estradas que ligam as propriedades ao mar. Para além das canadas, apenas o moinho dos Frades, de cor vermelha e com uma baleia no topo, quebra esta monotonia a negro. E da sua varandinha ganha-se uma vista extraordinária.
Incrível constatar como num terreno de chão de lajido as videiras – e as figueiras – podem nascer e florescer, dando aqui e ali uma outra cor a esta paisagem. O verde no lajido é quase um milagre.
A Criação Velha, tal como Santa Luzia, são ambas lajidos, campos de lava bem preservada que são o resultado de erupções basálticas. Os lajidos apresentam escoadas lávicas de superfície lisa e micro-relevos. Pelo contrário, os biscoitos são escoadas lávicas de superfície áspera e cortante. Quer no Lajido de Santa Luzia, quer no da Criação Velha podemos ver as marcas de rilheiras (ou regueiras), sulcos cravados na rocha de basalto, cortesia da intensa passagem dos carros de bois carregados de vinho e outros bens.
Currais, lajidos, canadas, rola pipas e rilheiras, parece que é quase necessário um dicionário à mão para podermos prosseguir viagem por esta fantástica paisagem feita de contrastes da vinha da ilha do Pico.
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