Não haverá forma mais estilosa de entrar em Murça do que descer ao volante de um carro, ora curvando para a direita, ora curvando para a esquerda, pelas Curvas de Murça, quais estrelas da Fórmula 1, ao mesmo tempo que vemos desfilar os montes que rodeiam o vale do rio Tinhela, afluente do Tua. Estamos em Trás-os-Montes e a paisagem e o ar puro fazem-se valer.

É no final das Curvas de Murça, a um pequeno desvio da estrada nacional, que temos um testemunho da ancestral povoação e importância da região. Por aqui passava a grande via romana que ligava Braga a Astorga, construída pelos romanos há mais de 2000 anos. Descemos pelos vestígios da calçada romana e chegamos ao lugar onde fica a Ponte Velha romana, substituída algures na época medieval pela estrutura que ainda hoje podemos calcar, atravessando o Tinhela de uma margem à outra pelo seu arco em granito e percebendo o escudo de Portugal encimado por uma coroa. Note-se que até 1872, data em que foi construída a Ponte Nova sobre este rio, a Ponte Velha era o seu único ponto de passagem na estrada que ligava Vila Real a Bragança. Diz que andam a construir por aqui uns passadiços, o que neste caso só virá dar razão a quem pensa que esta moda é uma intrusão desnecessária na natureza e na paisagem.

Chegados a Murça, logo damos com a “Porca de Murça”, símbolo maior da vila e mais um testemunho da sua muito antiga ocupação por povos diversos. É um berrão, um animal em tamanho natural, uma rude estátua zoomórfica em granito usada pelas culturas castrejas dos povos pré-célticos. A ideia de sacralização deste tipo de animais está ligada aos longos e duros invernos que se vivem na região, onde a alimentação tem de ser rica em gorduras para os vencer, sendo por isso adoradas e elevadas ao nível de divindades as criaturas fertilizadoras e reprodutoras. Não é caso único em Portugal, vemos exemplos semelhantes em Bragança e Picote, também na região transmontana, mas a “Porca de Murça” será o mais famoso – embora seja, na verdade, um porco macho o animal representado. Conta a lenda que há muitos séculos a povoação era visitada perigosamente por ursos e javalis. Os senhores da vila conseguiram correr com eles dali para longe, mas restava uma porca enorme e feroz que os continuava a aterrorizar sem que a conseguissem vencer. Até que chegou o dia, corria o ano de 757, em que a porca foi morta, construindo-se em comemoração pelo feito a estátua que chegou até aos nossos dias.

Estamos bem no centro de Murça, onde uma praça se sucede a outra, ambas bem cuidadas e floridas. A Igreja matriz, o pelourinho com o seu bonito capitel e os paços do concelho marginam-nas, acompanhados por alguns edifícios pitorescos. No entanto, não é preciso fugir das praças centrais para perceber os muitos edifícios degradados e em ruína, um deles brasonado e instalado na mesmíssima praça que recebe a sede do concelho. Uma lástima que confirma o que terá sido Murça e a sua posição no Portugal de hoje, lado a lado com tantas povoações que viram a sua população decrescer e a decadência instalar-se.


Por entre solares e até um mosteiro beneditino, a Capela da Misericórdia, numa estreita rua um pouco mais afastada do coração da vila, é mais um exemplo da Murça de outros tempos de mais destaque, com a sua bela fachada barroca profusamente decorada.

Murça ganhou foral em 1224, concedido por D. Sancho II, era então a Murça de Panóias. Terra de oliveiras e de vinho, para além da Porca, a sua divisa a estes elementos alude. Igualmente, pelas aldeias do concelho há dois outros elementos característicos: as fontes de mergulho e os relógios de sol, porque tanto a água como o tempo nos dão vida e orientação.

Não saímos do concelho sem visitar o Castro de Palheiros, o mais surpreendente testemunho da presença longeva dos humanos na região. Na rota dos castros ibéricos, este é um promontório proto-histórico numa escarpa de xisto quartzítico ocupada durante o Calcolítico e a Idade do Ferro – o único exemplo destas épocas que se conhece no norte de Portugal e um dos maiores centros políticos e religiosos em Trás-os-Montes durante o 3.º milénio antes de Cristo.


A vista do topo do cabeço onde se estabeleceu uma povoação fortificada é simplesmente esmagadora, um miradouro natural donde tudo se avista à nossa volta, ficando-se sem dúvidas do porquê da escolha deste rochedo para monumentalizar e habitar por parte dos nossos antepassados. Dada a sua grande dimensão, esta estação arqueológica está apenas parcialmente escavada, mas estão já identificados dois grandes períodos de ocupação do Castro de Palheiros: o mais antigo entre 3000 e 1800 a.C., correspondente ao Calcolítico, onde haveria um monumento, e um mais recente entre 900 a.C. e século II, correspondente ao final da Idade do Bronze e princípio da Idade do Ferro, onde haveria já um povoado que se crê que fosse uma espécie de acrópole rodeada de muralhas. Estas muralhas confundem-se com os afloramentos rochosos, tendo sido aproveitada na sua construção as condições e os materiais naturais do lugar.

Na base do Castro temos o seu Centro Interpretativo (fechado por altura da nossa visita), um edifício recente muito bem integrado na paisagem, donde sai um percurso circular que nos leva a conhecer o rochedo. A sua forma é impressionante, com destaque para os fraguedos afiados. E, depois, conhecer a história do lugar confere-lhe ainda mais ambiente. Deambulamos pelo espaço e sentimos que não são apenas pedras, antes houve por aqui vida organizada por parte de homens e mulheres criativos que não se limitaram a sobreviver. Dada a sua situação geográfica, este é também um excelente observatório para estrelas.

O Castro de Palheiros fica no Vale do Tua, o pretexto que nos trouxe até Murça. Começámos este post com uma espreitada ao rio Tinhela desde a Ponte Antiga dos romanos, à porta da vila de Murça, e acabamo-lo a espreitar o mesmo rio, afluente do Tua, no lugar da sua foz, nas Caldas de Carlão quase diante da Brunheda, num ponto onde os concelhos de Murça, Alijó e Carrazeda de Ansiães se encontram. Isto anda tudo ligado.