Chegada manhã cedo à ilha do Faial, tinha pressa em pegar logo no carro e seguir para o Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos, onde tinha visita guiada marcada para as 11:00. Tinha uma hora para lá chegar, mas, conhecendo-me bem, seria difícil não me distrair pela paisagem no caminho e guarda-la para mais tarde. Contra todas as probabilidades, lá consegui.
Mal me lembrava da zona dos Capelinhos e quando lá estive, há muitos anos, ainda nem sequer tinha sido criado o Centro de Interpretação, inaugurado em 2008 por ocasião dos 50 anos da histórica erupção. Mas sempre tive mais sorte do que Raul Brandão: quando o escritor passou pela ilha no primeiro quartel do século passado não havia sequer o vulcão dos Capelinhos e não pôde sequer testemunhar – e disso dar-nos conta no seu livro As Ilhas Desconhecidas – o ambiente lunar do mais novo pedaço de terra portuguesa.
Foi em 27 de Setembro de 1957 que um novo vulcão nasceu no mar e, com isso, mudou a ilha não apenas em termos morfológicos mas também socialmente. Recentemente, em Março deste ano, o Vulcão dos Capelinhos foi classificado como Monumento Nacional, pelos “valores naturais, cénicos, culturais e históricos de relevância incontestável, cuja integridade deve ser preservada”. O Centro de Interpretação explica-nos isso e muito mais, sendo, pois, de visita obrigatória.
Até chegarmos aos Capelinhos o verde domina a paisagem. Mas nesta ponta da ilha a terra passa a ser escura, realçando ainda mais as formas dos novos montes criados pelo vulcão, num contraste perfeito com o azul do mar e do céu. Enterrado na terra, a entrada para o Centro de Interpretação, projecto do arquitecto Nuno Ribeiro Lopes, foi pensada propositadamente para parecer que estamos a entrar dentro do vulcão. Aí – no Centro de Interpretação, não no vulcão – um enorme foyer nos espera, bem como a interpretação in loco de um ponto de vista informativo e científico do que e como aconteceu naqueles 13 meses que durou a erupção do vulcão e do impacto produzido por este fenómeno que mudou para sempre a paisagem e a demografia do arquipélago. Um filme em 3d sobre a formação do planeta e do arquipélago dos Açores, uma exposição sobre o vulcanismo no mundo e nas várias ilhas do arquipélago, em especial, na ilha do Faial, mais outro filme belíssimo com a recriação da erupção do vulcão e, ainda, uma mostra fotográfica dos diversos faróis dos Açores, a lembrar a importância que o farol dos Capelinhos teve como testemunha privilegiada da erupção e do nascimento desta região. Por fim, esta viagem termina com a subida a este farol para contemplar a paisagem fantástica ao seu redor.
Foram o faroleiro e os baleeiros das vigias do noroeste do Faial os primeiros a perceber movimentações estranhas a cerca de 1 km ao largo da ilha. Era uma erupção marítima, a primeira passível de ser observada por todo o mundo. Na verdade, para aqui vieram cientistas de todos os cantos desse mesmo mundo e esta foi a primeira erupção vulcânica a ser completamente documentada e estudada. Também muitos curiosos locais, depois do susto inicial, fizeram questão de presenciar este espectáculo ao mesmo tempo belo e assustador feito de grandes explosões com a emissão de jactos de cinzas negras para o ar. Durante os 13 meses que durou a erupção, a ilha do Faial chegou a aumentar 2,4 km2, tendo primeiro visto formar um pequeno ilhéu, depois um segundo, tendo ambos acabado por submergir; um terceiro ilhéu veio a crescer e acabou por se ligar ao Faial por um istmo. Ou seja, a terra foi rompendo o mar, alargando, encolhendo, desaparecendo, unindo, como se de um jogo se tratasse. Mas não, é apenas a beleza da formação do nosso planeta, privilégio que os nossos compatriotas contemporâneos puderam observar.
Ao fim de 13 meses, a actividade do vulcão foi diminuindo até que terminou em 24 de Outubro de 1958. O cone principal do vulcão chegou a atingir uma altura de 160 metros e dos 2,4 km2 de aumento que a ilha do Faial chegou a ter, restam hoje apenas 0,6 km2, por força da intensa erosão, sobretudo do mar, mas também do vento e da chuva, de que o vulcão dos Capelinhos continua a ser alvo – aliás, a este propósito, já não é possível percorrer o trilho que nos levava ao topo do vulcão.
Pelo meio, para além da beleza do nascimento de um pedaço de terra e da importância científica do fenómeno, apesar de não terem sido registadas vítimas mortais ficou para sempre o êxodo em massa dos açorianos. As cinzas da erupção do vulcão levaram a que milhares de casas ficassem soterradas e à destruição dos campos agrícolas e das pastagens. Os habitantes do Faial viram o seu presente e futuro comprometido. Graças aos esforços do então governador civil António de Freitas Pimentel, foi conseguido que o Congresso dos Estados Unidos da América aprovasse uma legislação extraordinária que alterou a quota de emigração até aí existente. Com isso, e mesmo se a política de ditadura do Estado Novo de Salazar não via com bons olhos a emigração, mais de metade dos habitantes do Faial deixaram a ilha. Mais, aproveitando o sonho americano que muitos ilhéus tinham, estima-se que durante as décadas seguintes cerca de 30% da população açoriana tenha abandonado o arquipélago.
Hoje, não se pode dizer que a população tenha voltado. Mas assiste-se a uma nova dinâmica à boleia do ainda pouco mas crescente turismo.
E a paisagem, essa, feita de lava e de cinza, segue atrativamente desolada, terra negra que vai vendo querer crescer um arbusto aqui e ali, até mesmo umas árvores inteiras. Perto dos Capelinhos até se vai vendo plantações de vinha, na esperança de que o carisma do vulcão dê um sabor também distinto ao néctar dos deuses.
O farol construído em 1903, o primeiro do Faial e o terceiro do arquipélago, continua de pé, embora em ruínas e com o seu primeiro andar soterrado. A sua elegância no meio da paisagem árida é tocante. O topo deste sobrevivente é hoje um miradouro excepcional. Lá em cima percebemos os contornos incríveis do vulcão e do lugar na perfeição, curva sobre curva, ondas a bater na rocha preenchida de areia umas vezes castanha, outras preta, às vezes até vermelha, mas sempre escura. Cabeços negros junto ao mar com vista para cabeços verdes ilha adentro. E cá em baixo, discretamente e solidariamente soterrado, o edifício circular do Centro de Interpretação, parceiro já indispensável deste lugar mágico.
Havia referido que o trilho que nos permitia subir até ao vulcão está interdito, mas muito mais terra resta para vaguear e admirar, caminhando para cima, em direcção a um dos cabeços na nova montanha, ou para baixo, em direcção à Casa dos Botes Baleeiros e à pequena praia do Porto Comprido. E uma dúvida quase certeza nos toma: da próxima vez que voltarmos, esta terra estará diferente, como se de um work in progress se tratasse.
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